O que você viveu ninguém rouba

O que você viveu ninguém rouba

O mundo está repleto de ladrões. Não apenas na politicagem do dia a dia, como nos governos pegajosos. Nas igrejas, escolas, nos hospitais, nos órgãos de segurança pública os gatunos e salafrários de plantão estão à espreita. Ninguém escapa à sua roubalheira disseminada e compulsiva. Nem aquele santo recém canonizado. A noviça que virou freira. O professor que entrou para a academia, defendeu sua dissertação no mestrado e hoje ostenta o título de doutor — mas volta e meia engana seus alunos, saindo mais cedo de sala de aula.

Desnecessário sublinhar, entram para a lista a maioria dos advogados, policiais, taxistas, corretores imobiliários, já nascidos com o carimbo da ladroagem estampado na testa. Viva as exceções, felizmente. Que são poucas, lamenta-se. Sempre há a sanha incontrolável, quase automática, de passar a perna em alguém. Um certo prazerzinho, salivando escondido da nossa frágil sensatez e pretensas regras morais.

Dar fechadas no trânsito, “esquecer” de devolver o troco a mais recebido. Pegar emprestado e nunca mais devolver o livro, o batom da mãe, o tênis incrementado do irmão mais velho, o smartphone novinho do pai, o dinheiro esquecido por alguém na mesa da cozinha.

Roubar beijo da namorada do amigo, sem que ele note. Deixar escapar um sorriso sedutor para o ginecologista, ou o santo padre, concentrado em suas prédicas. Vade retro satanás. Multiplicar o número de amantes durante o casamento, sem perder jamais a expressão de candura no rosto. Atores e atrizes nota dez.

Entretanto, nesta história toda, vale ressaltar algo fundamental: ninguém rouba o que é seu, genuinamente. Aquilo que aterrissa bem dentro dos seus pensamentos e sonhos. Os defeitos, qualidades e intenções que passeiam em sua alma.  Alguns sentimentos contraditórios, emoções intensas, a presença selvagem do instinto, aquietados pela cumplicidade do silêncio.

Sim, podem deixar você nu em pelo no meio da rua, sem carteira, roupa, o óculos francês caríssimo, adquirido na última viagem a Paris. Podem invadir sua praia, assolada por arrastão sem tamanho. Podem enganar o porteiro e entrar na sua casa, sequestrar móveis, eletrodomésticos, os dólares guardados no fundo da última gaveta do armário. Arrancar das raízes do seu espanto as joias da sua bisavó, objetos de valor incalculável.  Surrupiar o laptop de quinta geração, seu desejo máximo de consumo dentre as novas tecnologias. Marido, mulher, filhos e empregada também integram sem distinção o pacote do sequestro e do estupro.

Fazer o quê, se todos neste momento já foram amarrados, amordaçados e humilhados pelos bandidos? Embora seus olhos devam manter-se abertos encarando o terrível pesadelo, você ainda possui algumas válvulas de escape. Cantarolar para si mesmo melodias que adora. Recitar sem sons poemas de Neruda, Drummond e Quintana. Lembrar das recentes visitas à obra de Manoel de Barros, poesia tão simples e rasteira quanto magistral — versos que se ocupam da beleza de lagartos, árvores e pedras, habitando a paisagem pantaneira.  A chuva fina e sincopada que namora as margens do riacho.

É certo, você pode fugir para recantos só seus, lugares com trejeitos camaleônicos, mudar de rumo quando lhe aprouver, em função das ordens do seu coração, ou dos anseios da sua fantasia mais dourada.

O que você viveu ninguém rouba. Seus amores secretos, tempestades e estiagens, sonhos alagados de ideais, as vezes tão pueris e ingênuos. Seu pendor artístico, os gestos incompletos, sorrisos entregues às luzes do anoitecer, pálpebras que piscam com suavidade, mistérios da alvorada.  Todas estas riquezas lhe pertencem. Esta é a sua abastada herança, que se manterá pulsante, enquanto você, com suas vestes de carne fresca ou amadurecida, deslizar entre a terra dos homens.

Você é seu redentor e algoz. Aquele que o salva de sombras, emboscadas, do abandono de  frias noites soturnas. Também, a um só tempo, você  pode agir como  quem se aprisiona e se algema a perversões sinistras, práticas escusas em quartos sujos e escuros. Mãos criminosas ou beatíficas que o conduzem ao voo de águias celestes e libertárias. Este universo é só seu e ninguém consegue extirpá-lo das suas entranhas.

Esteja você doente, há meses sobre uma cama. Talvez tenha perdido as pernas em um acidente de carro. Quem sabe se encontre injustamente atrás das grades. A família inteira disse adeus a você, em um acidente aéreo. Ou nada disso tenha acontecido.

A realidade e suas tragédias podem ter escapado às suas tentativas de controle e manejo. Mas é inútil dar às costas quando o destino tão avesso a comandos se aproxima, exibindo seu livre arbítrio. Afinal, tudo o que você amealhou intimamente, as histórias cúmplices dos seus desejos, a generosidade plantada a esmo e sempre em silêncio, todos estes valores são seus.

Ainda que você envelheça e já no limiar da morte, perceba fugirem suas memórias ou a consciência delas. Mesmo que submetido ao cansaço dos anos, se curve na presença de lembranças anêmicas, os seus pertences, desbotadas fotos, ainda estarão lá. Guardados na caixa de preciosidades que compõem toda a sua vida.

Ainda que você queira enterrar ou incinerar experiências, elas permanecerão flutuando. Ligeiras e leves como um pássaro pequeno. Enquanto a vida soprar em suas veias, em algum canto do seu coração, o seu álbum de histórias permanecerá intacto.

Mesmo que você tente se sabotar de diversas formas, sonegar da consciência pendores e raros talentos, eles ainda continuarão existindo. Talvez assustados, tímidos e encolhidos na antessala do seu espírito. Porque verdade seja dita: nem mesmo você, por mais que se esforce, consegue roubar a si próprio.

Título tomado de empréstimo do livro ‘Memória de Minhas Putas Tristes’, de  Gabriel García Márquez.
Fotografia: Josefine Stenudd