A prostituta que me amava

A prostituta que me amava

Conheço o direito de permanecer calado. Mas, eu quero falar. Eu preciso muito falar, se o senhor não se incomoda. Podia sentir o amor bafejando no meu encalço, gatinhando sobre quatro patas, beijando-me o fofo da bunda, mendigando a minha atenção, diminuindo-se para avolumar-se mais tarde dentro do meu peito. Jamais o vira assim, tão subjugado, o amor. Sentia-me tão querido pelas pessoas quanto uma nota de cem dólares. Cederia, de bom grado, o meu direito de imagem para que o Tesouro Americano trocasse a silhueta carrancuda de Benjamin Franklin pela minha cara de paisagem.

Enfim, a vida tinha sorrido para mim e não era de escárnio. Sabia que o meu sucesso não seria voo de galinha. Eu era um pobre desgraçado que tinha dado certo. Podia cantar de galo, dizer que tinha dado a volta por cima, que tinha a faca e o queijo nas mãos, que estava por cima da carne seca, que nadava de braçadas, que causava espécie. Com exceção das estátuas e dos mortos — e quem precisava deles? — todos sorriam de contentamento ao se fotografarem comigo.

Quando vim ao mundo, os ratos todos se mandaram, ficaram mudos. Foi por causa dos gritos de mamãe quando lacerei a sua forquilha. Não nasci na penumbra simplória de uma manjedoura, como fizera o Cristo, embora, todos do cortiço já se sentissem um tanto embrutecidos, bestializados, mais bichos do que a média ponderada da população. A estrela guia era o cachimbo de crack que meu pai acendia; os três reis magos, três tigres tristes a chorar por mim. De normal, o meu parto só teve abandono e dor. No mais, era tudo alucinação.

Comecei a chutar cabeças desde cedo. Brigas de rua, o senhor sabe. Meu pai morreu de tiro; minha mãe, atirou-se de uma ponte. Foi vovó quem teimou com o diabo e me levou para treinar na escolinha do Tessalonicenses. Eu ia todos os dias só por causa da merenda. Sentia-se uma fome danada na fase de crescimento. Tanto esforço por um prato de comida fez de mim um jogador de destaque. Eu simplesmente me sobressaía dos outros. Até bem pouco tempo, a maioria comentava que eu tinha talento nato para ser um zero-à-esquerda. Vovó, não. Olhando para as suas mãos trêmulas de lavadeira, ela repetia o mantra de que eu era uma espécie de último sopro. Ou dava certo na carreira como atleta profissional ou virava foguetinho para o tráfico que mandava no gueto. O sucesso foi tão rápido que eu, sinceramente, não me recordo quando foi que deixei de ser uma promessa para me tornar um cobiçado atacante das categorias de base do meu time do coração. Quem diria… Eu nem sabia que tinha um coração. Será que tenho, senhor? Posso continuar falando? Muito obrigado.

Quando dei por mim, já fazia três refeições por dia, vestia roupas limpas e dormia numa cama que era só minha. O meu corpo crescia junto com os meus sonhos, deixando desconcertadas as ratazanas do meu passado. A vida dava um jeito. O mundo tinha conserto. Até que vieram o poder e o dinheiro para complicar as coisas dentro da minha cabeça.

Em três anos, aos dezoito, eu já estava rico. Mudei-me da comunidade. Comprei uma casa para minha vó morar com os meus irmãos. No começo, éramos seis, mas, a taxa de mortalidade infantil, o senhor sabe, sempre foi um escândalo no país; de tal sorte que sobramos apenas eu e mais dois. Comprei um carro. Concedi entrevistas. Virei capa de revista. Levantei taças. Fui convocado. Colocaram o meu nome numa escola. A meninada simplesmente me idolatrava.

A fama é um sonho que só termina quando a gente dorme. É quando se consegue trégua e paz. Perdi a privacidade e já não dava para ir a pé comprar pãozinho na padaria da esquina. Eu queria viver aquela antiga liberdade de novo. Sentir saudades dos meus tempos de meninice foi algo inesperado, mórbido, uma reação paradoxal que me deixou desentendido. Pois, a minha infância tinha sido um suplício. Isso Deus não explicava. Por que não nasci numa família de casta burguesa?

O sucesso como atleta-de-ponta me levou para o estrangeiro. Aprendi outra língua, e mais outra, e outra mais. Beijei mais de mil bocas, rocei mais de mil línguas. Ficou inviável identificar quem amava a mim ou ao meu dinheiro. Eu tinha me tornado uma celebridade. Estava no auge da fama, da forma física e da forma técnica. Acumulava prêmios, títulos, comendas. Era convidado para festas, homenagens, programas de TV. Batizavam crianças com o meu nome, o senhor acredita numa coisa como essa? O Papa quis me conhecer. O Dalai Lama escreveu-me uma carta.

Pensei que a bajulação toda não tinha mais limite. Houve dias em que pensei que era Deus, imagine só o senhor. Parecia que o mundo inteiro me adorava. Inclusive, essa moça tombada aí no chão. É uma garota tão bonita. Eu não queria matá-la, senhor. Eu juro que não queria matá-la. Será que pode me conseguir um copo d’água, por gentileza? Eu ainda tenho muito o que falar.