Queimando por dentro como a Catedral de Notre-Dame

Queimando por dentro como a Catedral de Notre-Dame

Conheci Sue Mae num show de esqueletos no Chifre da África. Era temporada de horrores no norte. Chovia canivetes durante um ritual de mutilação genital de meninas e a nossa vontade de voltar correndo para casa crescia a cada pôr-do-sol. Descêramos profundo demais nos subterrâneos do bestial comportamento humano. Fome. Sede. Pragas. Guerras tribais. Iniquidade. Servíamos provendo impreteríveis paramentos para os paramédicos do Médecins Sans Frontières, cuidando com música da assepsia dos pesadelos, lavando os coágulos de terror com jatos de aguarrás, espantando com trejeitos-de-penicilina os germes desarrazoados, embriagando os doutores com terebentina após um expediente exaustivo que nunca tinha fim e conversando sozinhos como se a vida fosse um moinho. A loucura já parecia íntima e confiável como uma irmã mais velha. Fazia tempo, estávamos mais afeitos à contracultura, contudo, aderidos à vida real feito um tumor entranhado na carne. Sempre que nos sentíamos prestes a derreter em lágrimas de sofrimento éramos salvos pelas crianças sorridentes e serelepes que corriam pelo terrão como se houvesse uma amanhã. E havia. Ainda dava pra peitar a morte.

Mais ou menos. A vida nunca tinha um contrato. Décadas atrás, muito antes do voluntariado no MSF, Sue Mae ganhava a vida como contralto numa trupe vocal do Camboja e, por causa de um espetáculo marcado de última hora, perdera o voo e a explosão. O esposo e a trinca de babies estraçalharam num atentado a bombas-de-gafanhotos no aeroporto de Beirute em 1983. Perdeu o check in, por outro lado, ganhou vários anos a mais de vida pensando no que era sem sequer ter sido. Desde então, embora fosse uma cantora com um timbre vocal tão peculiar, decidiu abandonar o estilo de vida padrão para se dedicar ao esoterismo e às causas humanitárias e extraorbitárias. Sue Mae estava extraordinariamente convicta de que os seres humanos podiam até se sentir sozinhos numa mesa de bar, num banco de igreja ou na jaula de um emprego enfadonho, porém, nunca na completude do universo. Cordial e bem-humorada, nutria a expectativa de um dia ser abduzida por um disco do Renaissance e contrair núpcias com um ET. “Fraquezas típicas de uma terráquea com os pensamentos sempre em ebulição”, ela dizia.

A semana passada foi particularmente tétrica. Compareci ao mesmo desagradável cemitério por quatro vezes consecutivas para me solidarizar com amigos que tinham perdido algum ente querido. Foi quando eu soube, por meio de um incomum amigo em comum, que Sue Mae também tinha morrido. Ela parecia uma veterana saudável e exuberante desde a última vez em que nos encontramos num brinco-de-lanchonete do centro da cidade, quando lamentávamos, embasbacados frente às aterradoras imagens da TV, as labaredas vorazes que consumiam a Catedral de Notre-Dame. “Que se dane. Era só mais uma igreja velha”, comentou um sujeito rude, vestido com a camiseta promocional de Mojo Filter, mais energúmeno do que a triste esfirra de boi-ralado que mastigava. Nem os perdigotos queriam saber da sua garganta, pois fugiam voando sobre o balcão de ardósia. Pelo que me contou o sujeito, Sue Mae foi arrebatada pelo estouro de um aneurisma na cachola, frágil feito um pneu de bicicleta, enquanto se exercitava na esteira. “Caiu mortinha ao meu lado”, explicou, com típicos floreios efeminados, o personal trainer.

Desde que a família sumiu do mapa de uma forma tão estúpida e impensável, Sue Mae decidiu lidar com a dor e o sofrimento alheios para driblar a própria miséria. A filantropia fazia bem à sua pele. Morreu por volta dos setenta. Era uma de minhas leitoras mais assíduas e cuidadosas, uma pessoa que verdadeiramente se interessou pelo que eu tinha a dizer nos meus textos, a ponto de ter a delicadeza de opinar a respeito do conteúdo, quase sempre discordando de tudo. Parecia um ser esotérico desembarcado de outro planeta. Espero piamente que a sua alma, na qual ela tanto cria, tenha sido abduzida por um ser extraterrestre à altura da sua elegância e altruísmo. Nós, que por aqui ficamos, continuamos a arder em chamas, por dentro, como a centenária Catedral de Notre-Dame.

Pintura de Edward Hopper