O primeiro tiro a gente nunca esquece

O primeiro tiro a gente nunca esquece

A primeira paixão da minha vida foi uma professora. A tia do segundo ano. Uma linda mulher morta pelas costas por um balaço desferido pelo marido, o grande amor da sua vida. Grande merda amar um ser humano que não presta. Só Jesus Cristo na causa. Pelos comentários que circularam na época, foi calibre 38. Eu tinha uns 6. Fiquei boiando na acurácia da informação balística. Não entendia nada daquilo: amor, armas, morte.

É um terrível lapso, mas, não me recordo do nome dela. Jaquisson, não. Jaquisson era o meu melhor amigo e morreu atropelado nas férias. E a culpa foi toda dele. Pedalava na contramão com a sua bicicleta nova, como se as crianças fossem anjos, estrelinhas no céu e blá-blá-blá. Conversa fiada. Pimba! Era uma vez o Jaquisson. Ninguém da escola compareceu ao velório. Só ficamos sabendo do desaparecimento dele quando não respondeu com o seu peculiar sotaque nordestino à chamada oral da professora substituta.

Filho de uma puta! Por que tinha que morrer justo nas férias de julho?! Sobramos eu e Pãozinho Seco, o meu segundo melhor amigo naquele antro educacional chamado escola, onde cantávamos, perfilados frente á bandeira, a droga do Hino Nacional, cuja letra jamais decorei. Falta de decoro de verdade é roubar um sonho. Por dias, ficamos vagando a esmo pelo pátio durante a hora do recreio que durava míseros vinte minutos. Sentíamo-nos enganados, corrompidos, perdidos como cachorros caídos do caminhão de mudanças.  

Penso que é preciso eu mudar de vida. Sempre cabe mais uma beiradinha de felicidade. Ando metido em projetos estranhos, pueris, ingênuos. Outro dia, comecei a contá-los para um amigo e ele disse que aquilo não era um projeto de vida, era depressão. Síndrome de Burnout, ele cacifou. Tomei o meu chope e o mandei às favas. Eu não pretendia comer a professora do segundo ano. Tinha acabado de sair da fase oral. Mamãe não me saía da cabeça. Convenhamos: Freud era foda.

Não sei o que me atraía na meiga professorinha, se a voz adocicada, se o jeito brejeiro. Era qualquer coisa, menos, sex appeal. Pode ter sido por causa do aroma gostoso do seu cabelo. Cheirava a bolo-saído-do-forno. Aquela experiência olfativa remetia direto à minha avó. E, se me fazia lembrar vovó, só podia ser coisa boa. Apesar da tenra idade, eu teria apreciado que ela me pagasse um lanche na cantina. Crush com coxinhas de frango-e-catupiry. Aquilo era o máximo. Certo dia, as professoras e os badecos levaram os alunos para conhecer a maravilhosa fábrica da Crush. Eu queria mesmo era leite com chocolate. Mesmo assim, segui na excursão. Não era dono do meu nariz. Aquele aroma artificial de laranja nunca mais me saiu da memória.

Como eu ia dizendo, ando acometido por certos projetos simplistas para ir tocando em frente a minha vida. Tenho 53. Se estivesse viva, a minha ex-professora, de cujo nome miseravelmente me esqueci, contaria perto de 80. Imagino como seria o nosso encontro casual: gerontologicamente, mágico. Se sentisse de novo aquele cheirinho de bolo caseiro, talvez desejasse devorá-la, desde que o banquete fosse consentido. Me amarro em velhinhas com os cadarços da minha camisa-de-força. Sim, essa frase não faz o menor sentido. Não, Jaquisson, não. Jaquisson (se ele não tivesse pedalado de alegria até morrer no para-choques de um fusca) e Pãozinho Seco estariam contando histórias prolixas sobre as suas próstatas, as suas amantes mal remuneradas e tudo o mais. Uma íntima anarquia mental me agita. Talvez, eu devesse escrever poesia novamente. Até hoje me tomam por poeta. São demais os perigos dessa vida, principalmente, para quem nunca leu um soneto sequer do Vinicius.

Assim vivemos. Sobrevivemos nos dias bicudos de um mundo carniça. Gente sofrendo perrengues em longas filas de espera. A grana curta. Um maldito oficial de justiça que está apenas cumprindo o seu papel e nos bate à porta. Homens que batem em mulheres. A saudade de pais que já não podem ser abraçados. Coisas desagradáveis, enfim. Deveríamos estar mais irmanados contra a misteriosa ditadura do viver a qualquer custo.

Carrego misérias no colo. As minhas e as do resto do mundo. A desgraça da hora que tem ocupado a pauta da mídia brasileira é o ataque mortífero que dizimou estudantes numa escola em Suzano. Apoplético, como se convulsionasse as estribeiras, como se não fosse ele responsável máximo pela segurança pública, o governo incita o povo a se defender da violência periclitante portando armas de fogo. Um senador da república chegou a recomendar que os professores guardassem revólveres na gaveta para a eventualidade de ter que matar um aluno ou um invasor. A proposta, portanto, é transformar o professor num assassino. E mais: que as maçãs sejam sumariamente substituídas por balas calibre 38.

Sinto-me esgotado como uma joão-bobo que perdeu o gás. Síndrome de Burnout. Que droga é essa? Por onde andará aquele velho amigo que só queria me ajudar mas que saiu sem pagar a sua parte da conta? Pensamentos em ebulição. Eu faço planos de uma vida mais modesta. Gols de bicicleta. Carro na garagem. Ir a pé pro trabalho. Tomar cerveja em copo americano. Torresmo frito. Ah… Torresmo frito… Celulares no modo silencioso. Revoadas de passarinhos. Pernas de louça. Águas de março. E aquele cheiro gostoso de bolo novinho que não me sai da cabeça.