Enjoei de viver

Enjoei de viver

— Encontraram mais dois corpos sem as cabeças.

— Caramba.

— Dois clientes a menos na sua cadeira.

— Isso não tem graça.

— Sou um homem simples com inquietações complexas. Sinto que o meu santo é fraco.

— Não diga isso. Você tem estudo. Por favor, não se mexa enquanto fala.

— Ouvi dizer que o governo ensandeceu de vez e vai priorizar o salve-se-quem-puder. Já tem deputado deixando o país com medo de ser linchado.

— Votei no Mister Jean.

— E eu no Mojo Filter. Meu discurso sofre de reiteradas quedas no senso comum. Isso é um saco. Veja, a minha principal meta para o ano é comprar uma arma. Trabuco na mão, Jesus Cristo no coração. Sou um desgraçado de muita fé.

— Não se esqueça que eu tenho a navalha. Mais um pio e corto a sua jugular.

— E perder gorjeta de um cliente generoso?

— Hoje, por causa do mau humor, você vai pagar dobrado. Ninguém merece.

— Ando descapitalizado, momentaneamente, desde que nasci. Mamãe bem que podia ter me parido ornitorrinco. Ao menos, eu teria garantida uma jaula decente num zoológico de Oakland.

— Procure um médico. Tem manchas aqui na sua cabeça.

— Nasci por descuido. Ser pobre é uma fatalidade que não desejo nem mesmo ao meu pior inimigo. Preciso de uma rifa, de uma ação entre amigos para comprar um pau-de-fogo.

— Não brinque com a pobreza. Seu cinismo me irrita. Ninguém mais tolera tanta violência.

— Que se dane. Entre mortos e feridos, no final das contas, ninguém se salvará. Como eu já disse, sou um homem de pouco valor. Quisera aplicar na bolsa. Mas, o meu negócio é carteira, você sabe. Bater carteiras, eis a minha empresa. Podia ter completado o Ensino Fundamental para investir nas ações da Taurus.

— Fundamentalmente, de onde é que você arranca tanta bobagem?

— Dói-me o siso. Preciso arrancar o dente e essa ideia fixa de matar o meu dentista de 55 com um 38. Tenho 27.

— 27 anos de enganação, eu suponho.

— Não me interrompa quando eu estiver mentindo. Como eu já disse, tenho 27. Se fosse roqueiro, morreria de overdose ainda este ano, com direito a uma estrela na calçada da fama e um buldogue defecando sobre a minha brilhante carreira.

— Fique quieto com essa cabeça.

— O problema é a droga. O segundo grande problema da humanidade é a droga.

— E qual seria o primeiro grande problema?

— Deus. Deus e as religiões.

— Cuidado com essa língua.

— Lamberia você de graça. Sabe, ao invés de liberar o bangue-bangue, o Estado deveria faturar em impostos ao permitir a venda de drogas em supermercados e lojinhas de conveniência. Sei que o meu ponto de vista pode parecer inconveniente.

— Põe inconveniente nisso. Vai lavar?

— Sim. Estou pagando. Você sabe ser gentil sem me deixar constrangido. Água gelada, por gentileza. Esse calor tá derretendo o meu juízo. E então: não vejo muita diferença entre um cara se chapando com uísque, crack ou santo daime.

— Está escrito que ao pó voltaremos.

— Prefiro Poe. Allan Poe. É o que eu sempre digo. Não compreendo essa necessidade inata do ser humano se entorpecer. O mundo é uma grande droga. Pra que mais? Caramba. Adoro essa massagem na cabeça. Deus lhe pague.

— Vai lhe custar mais 10.

— Faça pela nossa amizade.

— Não somos amigos. Anda escrevendo?

— Fundamentalmente, eu me tenho me ocupado com pequenos delitos nas linhas do metrô. Tenho as mãos limpas. Nunca matei um homem. Nunca usei um estilete que fosse. Certa vez, por mero descuido, gozei na testa de uma venezuelana e ninguém deu a mínima. Pensaram que eu fosse um doido qualquer aprontando mais uma das minhas. E ainda vociferam que não existe preconceito racial neste país.

— Que conversa sem-pé-nem-cabeça é essa? Vai secar o cabelo ou posso aplicar o gel?

— Gel. Passe o gel. Passe lá em casa. Vamos ouvir música. Hoje, eu me sinto o próprio Elvis.

— Elvis morreu e, mesmo assim, deve ter muito mais cabelo do que você, amigo.

— Alto lá. Não somos amigos.

— (suspiro) O trem tá feio.

— Segue o trem, todo santo dia, rumo ao inferno de nós mesmos. Já li esse tipo metáfora em tantos poemas que nem sei por que continuo a ler poesia.

— Terminamos. Você me deve 30.

— Entendo o seu espanto: “Um sujeito semianalfabeto que ainda lê livros”. Não há redenção à vista. Deve ser o preço dessa fissura, desse cansaço na lida, desse terrível vazio existencial que o crime não compensa, nem sob os subsídios governamentais, nem sob a anuência da sociedade, nem sob a graça de Deus.

— Vá se catar. Não tenho troco pra 100. Facilite as coisas.

— Posso pagar em cartão?

— Desde que não seja cartão de visitas, tudo bem.

— Nunca antes na história dessa barbearia, você fez um corte tão ruim na minha cabeça. Ficou péssimo.

— Mudei de ideia. Sente-se. Vou decapitá-lo.

— Seus olhos andam sem viço. Enxergo tristeza aí dentro. O que aconteceu, gracinha?

— Nada.

— O que houve, baby?

— Nada, eu já disse.

— Pela última vez, me diga o que está acontecendo, senão, eu nunca mais corto as minhas madeixas nessa adorável espelunca.

— Enjoei de viver.

— Enjoou de viver?

— Sim.

— O que isso significa, doçura?

— Pelo amor de Deus, não quero falar neste assunto.

— O que isso significa, criatura? Você tá doente? Descobriu um tumor? Tá devendo um milhão? Você surtou? Mas que porra é essa, Aparecida?

— Transação negada. Tem outro cartão?

— Só tenho esse. Posso pagar da próxima vez?

— E eu tenho escolha?

— Faça sexo comigo e ficaremos quites.

— Suma já daqui.

— Pode ficar tranquila. Não sou caloteiro. Apesar das minhas convicções políticas, não planejo me escafeder desta terra.

— Passe bem. Tenha juízo. Beijos na Glória.

— Quem é Glória?

— Pelo amor de Deus, saia.

— Ok. Obrigado. Vê se manda alguém consertar essa droga de TV.

— Não gosto de televisão.

Dias mais tarde, a morte de Aparecida foi o assunto mais comentado nos principais telejornais do condado. Justamente ela, que não assistia ao Datena e não precisou de um decreto presidencial para se matar com um 38. E ela nem tinha 27.