Na noite de natal, matei um cara

Na noite de natal, matei um cara

Na noite de natal, matei um cara. Revirava lixo. Também chafurdo caçambas. Fugi a pé com o antigo suéter de um bacana respingado de almôndegas e sangue. Alguém sempre encontra cabelo no molho à bolonhesa e compartilha a foto do prato, injuriado, nas redes sociais, acusando a indústria alimentícia de triturar ratos junto com os tomates. Os órgãos de vigilância sanitária se dizem espertos, toleram determinado percentual de pelo animal dentro da comida. Não tolero a maioria das pessoas, quem dirá a boa gastronomia. Comi uma mendiga. Adoro as drogadas. Paguei-a com um lindo colar de pedras de crack que roubei de um brasileiro.

Fazia um frio de matar em Cinic City. Então, matei um cara na noite de natal. A regra era clara: sentia-se mais medo na escuridão da noite do que no clarão do dia. Sempre fui adepto das exceções. Eu cresci nas sombras. Nenhum enxerido garimparia sobras de comida no meu perímetro sem sentir o impacto contundente do cano-de-meia-polegada no oco da nuca. Nunca fui preso à toa. Tudo na vida tem um motivo. Nada acontece por acaso. Frequentava terreiros espíritas nos quais ouvia ladainhas como essas por todo o tempo. Tive que parar. Nenhum corpo aceitava a minha alma.

Falta pouco para o Ano Novo e os meus rancores estão todos envelhecidos. O que poderei fazer para renovar os votos de dias mais promissores? Pilhar uma casa? Roubar uma limusine? Enxertar a filha retardada de um bam-bam-bam? Sou meio tantan, é verdade. Ninguém que mora na rua desde criança merece diferente sorte. São os desígnios de Deus, e Deus é um ser tão seletivo quanto uma roleta de cassino. Quisera cantar um hino da igreja adventista, de banho tomado, de barba feita, de sarna curada e uma privada decente de louça branquinha, limpa e reluzente, na qual sentar e cagar todo o resto de humanidade que ainda sobra nas minhas tripas. Treparia com qualquer negra gorda que canta num coral de música gospel. Cuspo na mão. Abro a braguilha. O que me mata mesmo é essa dor na uretra. Senhor, que escreve certo por linhas tortas, faz um milagre por um dos teus filhos mais degringolados. Livra-me, ó Pai, desta dor, a fim de que eu pare de sonhar aberrações.

Canções natalinas ecoam pela Unhappy Street. Pensamentos ribombam por dentro como se a minha cabeça fosse uma panela de pipocas. Duendes repicam tambores. Tiros pipocam no ar. Ainda bem que eles são de festim. Viva Mojo Filter, o Presidente das Armas. Há uma guerra fria em curso na minha mente. A coisa tá russa. Tusso na esquina da Devil’s com a Sacramento’s Avenue. O catarro atinge a vitrine iluminada da Superb’s. O coágulo viscoso, tuberculínico, escorre solenemente pela vidraça. Há um presépio sofisticado ali dentro. Pelo semblante pueril, burros, vacas e carneiros aparentam maior felicidade do que eu. Tudo remete ao Papai Noel, até a solidão que me chega como um indesejável presente. Pressinto que a maldade é a minha mãe.

Na noite de natal, matei um cara. Não tinha nenhum motivo especial para cometer tamanha atrocidade. A não ser, as ruas vazias da cidade que sempre fazem minha cuca transbordar pensamentos mais livres e rudes do que o recomendável pelas autoridades sanitárias locais.