No caso João de Deus, a violência sexual não é o único abuso

No caso João de Deus, a violência sexual não é o único abuso

“Ele veio para a minha frente e fez o que fez comigo. Tudo o que você pode imaginar” desabafa a mulher que denuncia ter sido estuprada mais de dez vezes, aos 11 anos de idade, por João de Deus, um dos médiuns mais famosos do Brasil. Em seu depoimento dramático, a empresária parece não conseguir nomear o que teria passado. Corajosamente, encontrou nos termos “fez o que fez” e “tudo o que você pode imaginar” suporte para delatar o sofrimento mantido em segredo há três décadas. Ela é uma das pelo menos 200 pacientes que acusaram formalmente o curandeiro de perversão, pedofilia, tara. Legalmente traduzido: crimes de abuso sexual mediante fraude, abuso sexual de incapaz e estupro. Socialmente percebido: gritos oprimidos de possíveis vítimas ganham a mídia e silenciam uma nação de fiéis. Subjetivamente interpretado: possível uso impiedoso da fé daqueles que confiaram o tratamento de doenças e dores de alma a João de Deus.  Todas as abordagens levam a mesma pergunta. Por que ninguém delatou, nada, por tanto tempo?

Em uma semana, mulheres de pelo menos dez estados do país procuraram os Ministérios Públicos de suas cidades alegando serem vítimas de violência sexual praticada pelo curandeiro durante o tratamento espiritual. As brasileiras tomaram coragem depois que a holandesa Zahira Leeneke Maus contou sua história em rede social e para a televisão. Supreendentemente, uma delas é Dalva Teixeira, de 49 anos, filha do médium João de Deus, que depois da enxurrada de delações, alegou ser também uma de suas vítimas. Ela teria sido abusada pelo pai desde os 10 anos de idade em casa, no carro e durante viagens. “Meu pai é um monstro”, disse ela à revista “Veja”. A polícia acredita que os casos teriam começado na década de 1980 até 2017.

O médium tem 76 anos é referência em diversas partes do mundo. Há mais de 40 anos ele atende na cidade de Abadiânia, interior de Goiás. Há relatos de melhoria e até cura de enfermidades de todo o tipo de paciente: ricos, pobres, esclarecidos, sem estudo e até ateus. A casa recebe por mês cerca de 10 mil pessoas e o curandeiro já atendeu mais de 3,5 milhões de pessoas de diversas situações de vida.

Além da crueldade, o caso João de Deus estarrece, ainda mais, pois compila impiedades inimagináveis a um símbolo de espiritualidade e caridade. Um choque encarar uma figura de bondade vinculada a um mal feito generalizado de depravação que não poupou a própria filha. E que evidencia uma série de abusos: sexuais, físicos, emocionais, religiosos e financeiros aos crentes que depositaram sua esperança e confiaram poder divino a um homem que se transformou em um líder de algo similar a uma seita. Possivelmente João de Deus é um pervertido doente que foi protegido pelo dinheiro. A visitação à sua casa movimenta a economia de Abadiânia e entorno. Acreditem, mesmo depois das denúncias. Sem ele, comerciantes e pequenos empresários perdem os lucros. Portanto, questionar a rentável prática daquele que atua em nome do Divino pode comprometer o bolso daqueles que lucram indiretamente com a romaria. Outra circunstância que pode ter abafado a história é a fragilidade emocional de suas vítimas.

O psicanalista francês Claude Balier explica que o aprisionamento em uma relação de manipulação e coisificação, traço comum nos casos de violência sexual, contempla a identificação do agressor como “sedutor” tornando o sujeito passivo frente aos maus tratos. Em seu livro “Psicanálise do Comportamento Sexual Violento: Uma Patologia da Incompletude”, o estudioso discorre sobre como esse domínio sobre o outro evidencia a questão do poder e dos movimentos perversos a ele subjacentes. Ele trata da motivação do autor violento: “Ele penetra para não ser penetrado” finaliza. Dominar quem está doente ou desesperado é ainda mais fácil e dá para se notar muito claramente nas frases das denunciantes de João de Deus o desenho da prática da teoria de Balier.

“Ele disse que aquilo era para me curar.”

“Eu parecia estar paralisada, fiquei sem ação, em choque. Não consegui fazer nada.”

“É como se fosse eu a errada.”

“Ele aproveita das pessoas que estão doentes, no fundo do poço.”

“Ele disse que sabia onde minha família morava e mataria um a um se eu contasse.”

“Eu achei que ninguém acreditaria em mim porque ele tem muito poder.”

“Depois, senti vergonha, muita vergonha, me senti culpada, por tê-lo me deixado manipular daquele jeito, me senti uma idiota, completa imbecil. Por isso, para sobreviver, fingi que aquilo não havia acontecido. Não me permitia pensar naquilo e nunca mais voltei a Abadiânia.”

Sete relatos de pessoas diferentes. Juntos, costuram a justificativa universal para casos assim. Manipulação emocional, ameaça a gente vulnerável e boa-fé que tornam o medo e a vergonha imobilizadores. E, essas dores imobilizadas, tecem um enredo de horror íntimo tornando a ficção incapaz de competir com o impacto real de tais atrocidades. Que latejam, diariamente, nas vítimas de violência afetiva e sexual.

Por isso, jornalistas nacionais e estrangeiros buscam freneticamente casos e mais e mais casos vinculados ao médium. A história trágica, de circunstâncias impressionantes, garante repercussão midiática estrondosa. Positiva e didática, por um lado, evoca a reflexão. É também rentável. Além do aumento de vendas, abre a chance para uma mea-culpa da imprensa por adesão católica oficial há décadas, que levaram a queda vertiginosa de audiência dos segmentos evangélico e espírita. Portanto, empresas de comunicação precisam sim tratar o escândalo como suposto respeito ao credo individual, enfatizando o “inquestionável” estado laico. Ignorar a fé do público reduziu os lucros. Nem mesmo as reportagens mais completas ousaram discutir o poder do homem. E, agora, não dá para desconsiderar a ascensão das bancadas religiosas na política. Os investigadores também estão cuidadosos. O charlatanismo não foi cogitado pela polícia e nem por denunciantes. Concordo com a parcimônia da abordagem por reconhecer o poder de condenação de um veículo de comunicação junto à opinião pública. Reconheço em mim, o poder da fé. Sou espiritualista e tive experiências maravilhosas em minha crença sem nome. Entendo e convivo com muitos que não acreditam em Deus pois prezo o respeito.  Já assimilei e aceitei o capitalismo como regente das relações comerciais e seu impacto no jornalismo. Como jornalista, me sinto obrigada a destacar também as motivações financeiras nos jornais. Mesmo não sendo esse o cerne da discussão agora.  Bem verdade, o urgente neste momento é aproveitar a comoção gigantesca e chamar atenção para os pequenos casos, desinteressantes para o público, todavia impactantes em muitos lares. “Eu realmente espero poder ajudar outras mulheres a saírem dessa sombra, porque nós não precisamos sentir vergonha. Ele tem que sentir vergonha. E todas as pessoas que o protegem para que ele continue fazendo o que faz”, declarou Zahira em entrevista.  E ela tem razão.

Ao escrever o texto, me lembrei de um fato de infância que me marcou e estava adormecido. Estava na última cadeira de um ônibus, ao lado do meu tio. Um homem contava um caso de futebol para ele enquanto passava a mão no meu joelho, descoberto pois eu estava de bermuda. Quando descemos, meu tio me xingou. Disse que eu deveria ter impedido que me tocassem. Eu tinha 9 anos e nem entendi porque ele não deveria tocar e, muito menos, do que me defender estando ao lado um parente e, adulto.  Durante o registro dessa memória aqui, me lembrei de outras coisas. Muito piores. Das quais fui confidente. Engasguei. Arrepiei. Chorei por dentro porque tinha gente do lado. E senti visceralmente a resposta que busquei ao tratar do assunto. João de Deus nunca havia sido denunciado pois a rede que o protege é um emaranhado afetivo poderoso que opera com ajuda de poderosos.

Fotografia: Marcelo Camargo/Agência Brasil.