A vida é um ajuntamento de momentos exasperantemente ordinários, entremeados aqui e ali por eventos maravilhosos e horríveis em igual proporção, mas só conseguimos nos fixar nestes, nos horríveis, nos infaustos, nos desastrosos, nos trágicos. A beleza está em muito mais do que pode captar nossa humana miopia, e, por essa razão, escapa-nos esse sutilíssimo movimento do existir, como o da delgada bailarina num palco suntuoso, quanto a metamorfosear em poesia quase tudo o que entendemos como feito de uma matéria qualquer, fenômeno que só ocorre se o permitimos, ainda que inconscientemente. Ninguém tem o poder de controlar nada, muito menos as reviravoltas do destino, e é por aí que movimenta-se “Perdido na Montanha”, uma mistura de drama de família, aventura selvagem e documentário, ancorado num garoto de doze anos meio sem norte.
Os gêmeos Donn e Ryan moram com os pais, Donald e Ruth, e os irmãos mais novos numa casa modesta em Millinocket, no Maine, extremo nordeste dos Estados Unidos. Donald tem um emprego que exige-lhe constantes e longas viagens ao redor do país, e já havia prometido a Donn e Ryan uma pescaria de duas semanas, passeio pelo qual os meninos esperam ansiosos. Boa parte do conflito vale-se desse gancho, e o roteiro de Joseph B. Egan e Luke Paradise capta bem a escalada de tensão entre pai e filho, mirando a autobiografia homônima de Donn Fendler (1926-2016), fenômeno de vendas em 1939, um tempo de profundas revoluções pouco antes da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Donald, Donn e Ryan sobem o monte Katahdin em 15 de julho daquele ano acompanhados de um guia, encontram um grupo de trilheiros e sua história jamais será igual, marcada pelo revés que justifica o longa.
Nas sequências que mostram Donald e os filhos na caminhada rumo ao pico do Katahdin, o diretor Andrew Boodhoo Kightlinger trata de continuar sublinhando as divergências entre Donald e Donn, até que o enredo começa a, enfim, dar pistas sobre o que vai acontecer. Todos estão loucos para voltar à base do monte, Donald parece especialmente arrependido, mas Donn quer percorrer até o último metro da trilha dos Apalaches. A solução para o impasse é o garoto continuar apenas com o guia e o irmão, que os acompanha mais por uma incipiente vaidade masculina que por convicção racional. Uma neblina densa encobre tudo, Donn perde-se do guia e o restante do filme divide-se entre a luta pela sobrevivência do protagonista e seu contraditório esforço por achar socorro e rever a família, ainda que isso o obrigue a andar mais de 125 quilômetros em nove dias, bebendo a água da chuva que ficava na superfície das folhas, alimentando-se de líquen e frutas silvestres e ferido, uma verdadeira façanha até mesmo para um homem adulto.
Este é daqueles filmes que só valem a pena por causa do elenco — e, neste caso, o elenco é Luke David Blumm. Na pele de Donn, Blumm é hábil em passar da cólera à falsa empolgação ao ver-se livre do pai que julga opressor, e à medida em que Knightlinger encaminha-se para o desfecho, inclui entrevistas com Donn e seus parentes, veiculadas em rede nacional de TV. O carismático ator, todavia, não tem o condão de fazer com que “Perdido na Montanha” figure na mesma categoria em que eternizaram-se “Náufrago” (2000), dirigido por Robert Zemeckis; “127 Horas” (2010), levado à tela por Danny Boyle; “Gravidade” (2013), a odisseia sideral de Alfonso Cuarón; “Águas Rasas” (2016), de Jaume Collet-Serra; e “Solo” (2020), de Hugo Stuven. A montanha de dinheiro do produtor Sylvester Stallone poderia ter sido muito mais bem aproveitada.
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