Cair mata. Cuidem bem de seus velhinhos

Cair mata. Cuidem bem de seus velhinhos

Mamãe fez arte. Mamãe fez arte e caiu da escada. Ela quebrou um dos braços. “Poderia ter sido pior”, foi o que disseram. Mamãe bateu a cabeça. Tomou um corte. Levou sete pontos no couro grosso da sua cabeça dura. Poderia ter trincado uma vértebra ou quebrado o fêmur, o maior osso do corpo humano. “Dos males, o menor”, é o que se diz. Eu digo para cuidarem bem dos seus velhinhos. A morte acidental por quedas dentro dos domicílios mata mais pessoas no mundo do que se imagina. Foi assim com a minha avó, mãe da minha mãe, que enroscou os pés no tapete, desabou da própria altura, fraturou o colo do fêmur e morreu de embolia pulmonar gordurosa no pós-operatório imediato. Cirurgias ortopédicas são perigosas, ainda mais quando envolvem pacientes senis. Cuidem dos velhos. Cantem para eles os versos do cancioneiro nacional: “Ando devagar porque já tive pressa”. A pressa é inimiga da perfeição. E dos idosos. Retirem do caminho quaisquer objetos que possam servir como obstáculos, como armadilhas para gerar tropeços, desequilíbrio e quedas. Cuidado com os pets que se enroscam nas suas pernas. Evitem os pisos escorregadios e os sapatos impróprios. Mamãe fez arte. Mamãe caiu da escada, apesar de todas as recomendações para evitá-la. Grande parte dos idosos não gosta de ser tratada como criança. É óbvio que não são crianças, apesar do comportamento errático. Velhos são adultos cujos cérebros não admitem que os seus corpos perderam força, elasticidade e jovialidade. A musculatura já não acompanha os comandos neuronais na mesma sintonia. Prevalecem a sarcopenia — perda de massa muscular — e o desequilíbrio de causas variadas, especialmente, decorrente do uso de medicamentos para o controle de doenças crônicas, como a depressão, o diabetes e a hipertensão arterial. Mamãe sabe que vacilou. Ela não precisava ter subido a escada espiral carregando um balde cheio de roupas. Vi mamãe despida, combalida, fragilizada. Ela não gostou que eu a visse nua e ferida. Paciência. Já passou. Não vai mais acontecer. Foi só um susto. Um sinal de alerta. Um bocadinho mais de aprendizado no auge dos 87 anos. Mamãe foi operada. Passa bem. Fixaram a ulna direita com placa e com parafusos. A vida é dura; os ossos, nem tanto. Nada dura para sempre. Nem mesmo a vontade de viver. Mamãe é uma mulher surpreendente. Ela adora viver. Quer ficar boa logo para reencontrar suas amigas. E dançar. E amassar argila. E declamar poemas. E decorar textos difíceis. E fazer teatro como se fosse uma atriz de verdade. Para mim, ela é uma atriz de verdade. Por favor, cuidem com carinho dos seus velhos. E dos seus ossos corroídos pelas primaveras. Todo cuidado ainda será pouco. Costumo comparar o corpo humano a um automóvel. Os desgastes do tempo são inevitáveis, por mais que se façam manutenções periódicas. Carro velho dá trabalho, bate biela, larga a gente na mão. Os nossos corpos também são assim, não podem ser exigidos além da conta, ou as consequências serão danosas, quiçá, irreversíveis. Mamãe reconhece que fez estripulia ao subir numa escada íngreme carregando um peso desnecessário. Poderia ter sucedido uma tragédia, é verdade. Acontece. Acontece muito. É que a gente não conhece as estatísticas sobre os acidentes domésticos fatais. Quedas bobas. Um escorregão no chuveiro. Um tapete que enrosca nos pés. Sandálias traiçoeiras. Um tropicão noturno, ao ir até o banheiro para aliviar a bexiga. Cuidem bem dos seus velhinhos. Retribuam todo amor recebido. As quedas matam mais do que se pensa. Catarro e diarreia também. Abandono e solidão, nem se conta. Mas isso é tema para outro dia. Mamãe quebrou um osso, mas passa bem. Ela gosta de assistir aos canais de TV da igreja católica. Ela reza. E como reza. Em particular, ela gosta do padre forte, bem apessoado, que se veste como caubói, usa chapelão de vaqueiro e veste calças justas, muito justas. O que se passa na sua cabeça? Ela jura que nunca mais subirá numa escada. Cumpra-se. É preciso ter cuidado, pois, há muitos sentimentos preciosos em jogo. O amor, por exemplo, em tese, inquebrantável. O amor é osso. Maior do que um fêmur. Mesmo assim, suscetível a rupturas que podem jamais colar.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a “Revista Bula” há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente “Bipolar”, uma antologia de contos e crônicas.