Há livros que assustam só de olhar. Seja pelo tamanho, pelas frases longas e pouco pontuadas, pelas palavras difíceis, pela falta de ação aparente ou pelo simples fato de parecerem “sérios demais”, muitas obras-primas acabam sofrendo injustamente com a fama de serem chatas. É como se o próprio livro nos testasse: você vai encarar ou vai desistir antes da terceira página? A verdade é que, por trás dessa aparência árida ou intelectualizada demais, às vezes se escondem histórias brilhantes, repletas de humanidade, humor, delicadeza e intensidade. Alguns romances exigem paciência, outros pedem apenas que a gente mude a chave da leitura. E aí, quando a engrenagem mental se ajusta, é impossível largá-los.
Muitos desses livros são vítimas do rótulo: “difícil”, “cansativo”, “parado”. Rótulos que afastam leitores sem dar uma chance real à experiência. Claro, nem todo livro vai agradar a todos, e tudo bem. Mas existe uma diferença entre o que é chato e o que só exige outro tipo de leitura, mais atenta ou sensível. A ideia de que todo livro precisa ser rápido, direto e leve pode ser injusta com obras cuja beleza reside justamente na profundidade, na construção lenta, no silêncio entre as palavras. Alguns livros exigem menos velocidade e mais escuta. E é aí que acontece a mágica: de repente, aquela história que parecia um tédio se revela fascinante. A leitura deixa de ser um esforço e vira um prazer inesperado.
Nesta lista, reunimos cinco livros que carregam essa fama ingrata de serem “difíceis” ou “chatos”, mas que, ao serem lidos com abertura e curiosidade, mostram um brilho quase escondido. São livros que desafiam, sim, mas também recompensam. Que não oferecem recompensas fáceis, mas que entregam experiências de leitura transformadoras. Obras que se revelam aos poucos, como quem testa a confiança do leitor antes de se abrir de verdade. Porque às vezes, por trás da capa sisuda, do título intimidador ou das primeiras páginas densas, mora uma história que pode marcar sua vida inteira. É só dar uma chance. As sinopses foram adaptadas a partir das originais fornecidas pelas editoras.

Deitada no consultório do dr. Seligman, em Londres, uma jovem alemã entrega-se a uma sessão nada convencional. Enquanto realiza um procedimento médico cuja natureza é apenas sugerida, ela nos guia por um monólogo intenso, caótico e fascinante, no qual identidade sexual, gênero, nacionalidade e culpa histórica se entrelaçam. Filha da Alemanha do pós-guerra, ela busca se reinventar na Inglaterra, longe do peso das gerações anteriores. Mas a morte do avô nazista e uma herança inesperada reabrem feridas que ela preferiria enterrar, ou transformar, talvez, cirurgicamente. A consulta é um romance implacável que parece inverter “O complexo de Portnoy”: uma mulher alemã confessa a um médico judeu não só suas neuroses e desejos, mas também um embaraçoso fascínio pelas vítimas do Holocausto e a angústia de pertencer a uma pátria marcada pelo trauma. Em tom provocativo, por vezes cômico e perturbador, o livro questiona até onde vão os limites da reparação, e se é possível extirpar da carne, e da memória, o que nos construiu. Uma estreia feroz, incômoda e brilhante.

Um autor em ascensão, celebrando o sucesso de seu primeiro livro, embarca numa turnê literária pelos Estados Unidos. Entre entrevistas, ressacas e encontros aleatórios, ele passa a ser seguido por um menino de pele muito preta — uma figura estranha, enigmática e invisível para todos os outros. O garoto fala sobre seus pais e um plano desesperado: ensiná-lo a desaparecer aos olhos da sociedade para sobreviver ao racismo sistêmico que molda seu destino. O escritor, por sua vez, sofre de uma condição que o impede de distinguir o real da alucinação, o que só torna tudo mais perturbador. Repleto de metalinguagem, crítica social e momentos de pura ternura, “Puta Livro Bom” transita entre o cômico e o trágico com fluidez impressionante. Jason Mott assina um romance sobre fama, trauma, legado, apagamento e violência racial, num país onde ainda é perigoso demais ser visto. Um livro poderoso, ousado e profundamente humano. Um título provocador para uma história necessária.

Emmanuel Carrère inicia este livro com um plano modesto: escrever um “livrinho simpático e perspicaz” sobre ioga e meditação, a partir de um retiro silencioso no interior da França. Mas bastam quatro dias até que tudo desmorone. O atentado ao Charlie Hebdo o arranca da reclusão e o mergulha num ciclo de luto, instabilidade e colapso psíquico. Diagnósticos clínicos, o fim de uma relação e a falência temporária da escrita, outrora seu refúgio, transformam o livro planejado em algo completamente outro. “Ioga” se torna um relato impiedosamente íntimo sobre depressão, bipolaridade, terrorismo e a luta desesperada por alguma forma de paz interior. O resultado é uma obra difícil de classificar: romance autoficcional, confissão fragmentada ou crônica de uma mente à beira da implosão. Com honestidade cortante e um humor amargo, Carrère escreve não sobre a serenidade idealizada do iogue, mas sobre o abismo entre a vontade de equilíbrio e o caos do mundo e da própria mente.

Durante a ditadura militar argentina, pai e filho cruzam o país rumo às Cataratas do Iguaçu, mas o que parece uma viagem de fuga logo revela sua verdadeira natureza: é um percurso rumo ao horror. Gaspar é herdeiro involuntário de um legado macabro. A mãe, morta em circunstâncias suspeitas, pertencia a uma seita ancestral conhecida como a Ordem, que busca o segredo da vida eterna por meio de rituais de contato com uma entidade chamada Escuridão. Como médium, o pai tenta proteger o filho do mesmo destino brutal que o consome, mediunidade aqui é uma sentença, não um dom. Com talento raro, Mariana Enriquez entrelaça terror sobrenatural e horror político: rituais arcaicos com sacrifícios humanos, casas vivas e sombrias, viagens à Londres psicodélica, desaparecidos da ditadura e os primeiros ecos da epidemia de aids. Em “Nossa parte de noite”, o mal se manifesta em muitas formas, algumas ocultas em cultos secretos, outras legitimadas pelo poder do Estado. Uma obra hipnótica, visceral e aterradora, que consagra Enriquez como uma das vozes mais potentes da literatura latino-americana contemporânea.

Doc Sportello, um detetive particular maconhado e anacrônico, se vê enredado numa trama caótica quando sua ex-namorada ressurge pedindo ajuda: seu novo amante, um bilionário do mercado imobiliário, desapareceu misteriosamente. A busca o lança num submundo que mistura surfistas paranóicos, contrabandistas lisérgicos, policiais corruptos, uma agiota amante de jazz e uma entidade obscura chamada Presa Dourada, que talvez seja um culto, uma corporação criminosa ou apenas uma fraude fiscal inventada por dentistas. Ambientado na Califórnia dos anos 1970, quando os ecos do flower power já se tornavam ruído, o romance é uma sátira nostálgica sobre o fim das utopias. Com humor ácido e erudição desvairada, Pynchon revisita o noir clássico filtrado por psicotrópicos, prestando tributo a Chandler e Hammett, mas com direito a teorias da conspiração, penteados afro, jazz obscuro e surf music. Ao fundo, a paranoia reina: toda resposta levanta uma nova suspeita. Entre delírios e revelações, Pynchon constrói uma crônica melancólica sobre o que se perde quando o sonho coletivo começa a ruir.