O que sobrevive, nem sempre brilha. Às vezes, é um caderno esquecido numa estante em Tomsk, uma edição clandestina passada de mão em mão durante os invernos soviéticos, ou um manuscrito engavetado até que a censura esmorecesse. A literatura russa é um território feito de cúpulas e porões. Há os nomes que ecoam nos salões dourados da história, e há aqueles que murmuram sob a madeira gasta das casas comunais. E é nesses murmúrios, nesses livros sem tradução ou com tiragens tímidas, que pulsa uma beleza crua, menos preocupada em ser monumental e mais interessada em ser fiel.
Espera-se da Rússia um épico. Mas ela também é feita de fragmentos, de ironias pequenas, de desastres domésticos. Nem tudo é Dostoiévski em agonia ou Tolstói em campo aberto. Às vezes, é uma menina soviética escrevendo num caderno escolar enquanto o pai desaparece no Leste; ou um linguista perdido entre memórias e delírios num hospital abafado; ou um funcionário público que decide, por tédio ou fé, reescrever a vida de São Jorge. Há uma literatura que recusa o centro e, por isso mesmo, o expõe melhor.
É curioso: quanto mais silenciosa, mais insubmissa ela parece. Como se soubesse que o poder teme o detalhe. Que um riso torto numa repartição pode ser mais perigoso do que um grito no comício. Essa Rússia subterrânea, feita de sátiras que ninguém ousava rir em voz alta, de distopias publicadas sob pseudônimo, de amores sem retórica, ensina outra coisa: o heroísmo pode ser só continuar escrevendo, mesmo quando já não se sabe quem vai ler.
E talvez seja isso o que une esses livros: o gesto de contar não para brilhar, mas para resistir. Para assombrar. Para manter, entre um regime e outro, a chama obscura da linguagem acesa. Porque, no fim, nem toda literatura é feita para ser descoberta. Algumas querem apenas ser lidas com vagar, como se fossem, e são, confidências passadas num sussurro.

Em seis contos interligados por vozes e afetos, meninas entre nove e onze anos vivem suas descobertas num bairro moscovita nos anos 1950, quando o país sussurrava as primeiras mudanças após a morte de Stálin. Elas passam de casa em casa, atravessam cozinhas, escadas, quintais e escolas, sempre observando o mundo adulto com espanto, discrição e um humor involuntário. Não há grandes feitos, apenas o cotidiano — com suas pequenas epifanias, castigos, segredos e silêncios. Ao fundo, paira a presença de mães severas, avós rituais e pais ausentes, compondo um pano de fundo que é mais sugerido do que explicado. A força do livro está nessa construção mínima e sensível da infância como campo de percepções complexas, mas sem vocabulário para expressá-las. Ulítskaia não idealiza, tampouco dramatiza. Com leveza e precisão, revela um tempo e uma geração em formação, deixando que os gestos falem por si. As meninas não compreendem tudo, mas sentem tudo — e é nesse espaço entre o que se vive e o que se entende que os contos respiram. A autora transforma o fragmento em memória, e a memória em literatura de rara finura e verdade.

Treze contos compõem este livro que marca a estreia fulgurante de Tatiana Tolstáia na prosa russa contemporânea. Em cenários soviéticos corriqueiros — apartamentos abafados, repartições sem cor, escolas esquecidas, ruas de bairro sempre iguais —, ela insere personagens cuja aparente banalidade abriga um mundo subterrâneo de lembranças, pressentimentos e lampejos oníricos. Nada de heroísmos ou epifanias: o que há são pessoas comuns, exaustas de si mesmas, tentando reencenar — às vezes em silêncio, às vezes em delírio — alguma forma de sentido. Cada narrativa parece emergir de um gesto mínimo: o som de um rádio, uma carta rasgada, o tom de voz de uma visita. E é a partir desses fragmentos do cotidiano que Tolstáia constrói passagens para o irreal, para o absurdo suave, para o devaneio que não se realiza, mas já basta por ter sido sonhado. Sua linguagem, rica e labiríntica, alterna registros com uma liberdade que espelha o próprio movimento interno das personagens: da opressão à fabulação, da espera à invenção. Sem jamais recorrer à caricatura, a autora ilumina os contornos trágicos da vida ordinária com graça oblíqua e precisão formal. Há algo de fábula nesses contos, mas também algo de ruína. E é nesse degrau — entre o encanto e o desencanto — que sua literatura se senta, observa e, em silêncio, resiste.

Um professor anônimo, envelhecido e à beira da desistência, é atingido por um raio enquanto cruza a rua. Contra toda expectativa, sobrevive — e mais do que isso: desperta com o corpo rejuvenescido e uma mente que se abre a capacidades intelectuais incomuns, atravessando idiomas mortos, padrões esquecidos de linguagem e uma intuição fora do tempo. Esse evento, ao mesmo tempo plausível e mítico, dá início a Uma outra juventude, narrativa que conjuga mistério, metafísica e perseguição em uma trama onde os limites entre realidade, mito e ciência são constantemente redesenhados. Perseguido por interesses obscuros e organismos secretos, o protagonista não busca fama, poder ou salvação: quer apenas continuar sua pesquisa — uma teoria total das linguagens e da origem do conhecimento. A partir daí, Eliade constrói uma fábula filosófica sobre o tempo como espiral, a juventude como memória arquetípica, e a consciência como fronteira instável entre os mundos. Em Dayan, a especulação se intensifica. A realidade se fragmenta em planos simbólicos e espirituais, enquanto o autor reinvoca tradições místicas hindus, hebraicas e gnósticas para explorar os caminhos possíveis da transfiguração humana. A narrativa torna-se mais rarefeita, mais ritual, aproximando-se de uma escrita de iniciação. Combinando estrutura de romance noir, ficção científica e ensaio esotérico, estas duas novelas compõem um díptico singular na literatura europeia do século 20 — e uma das expressões mais ousadas da imaginação filosófica de Mircea Eliade.

Neste volume, István Örkény reúne duas de suas obras mais incisivas — pequenas fábulas onde o absurdo se instala sem estardalhaço e, justamente por isso, torna-se inescapável. Em A família Tóth, um major em licença médica impõe seu cotidiano neurótico a uma pacata família do interior húngaro, que, incapaz de recusar a autoridade que lhe bate à porta, adapta-se com diligência ao desvario. A disciplina doméstica vira método de opressão afável, e a obediência cotidiana assume ares de terror cômico. Já em A exposição das rosas, o formato documental simulado serve de disfarce para uma sátira feroz: acompanhando os “últimos dias” de três pacientes terminais — um linguista obsessivo, um escritor à deriva e uma florista sem ilusão —, a narrativa desmonta com ironia seca os mecanismos da propaganda estatal. Entre entrevistas protocolares, memórias embaralhadas e gestos que tentam preservar alguma dignidade, o que emerge é o retrato de uma sociedade que administra até a morte com planilha e microfone. Combinando humor negro, estrutura precisa e diálogos que oscilam entre o nonsense e o trágico, Örkény oferece ao leitor uma experiência que desestabiliza, perturba e provoca riso amargo. Cada gesto, cada silêncio, cada frase aparentemente banal serve de espelho para um mundo onde o grotesco não é exceção — é regra. Literatura feita com bisturi e gargalhada, para leitores que não temem o desconforto da lucidez.

Por entre trens que deslizam na madrugada, cafés cheios de fumaça e salas de conferência onde o tédio se transforma em espetáculo, Kornél Esti caminha — ou melhor, divaga — como alguém que observa o mundo pela fresta de um espelho inclinado. Personagem recorrente da fase final de Dezső Kosztolányi, Esti não é exatamente um protagonista, mas um mediador: entre o real e o improvável, entre o absurdo e a lucidez. Nos contos reunidos neste ciclo, ele se apresenta como um sujeito brilhante e errante, às vezes um impostor, outras vezes um sábio por acidente. Ele coleciona episódios cômicos, encontros insólitos e reflexões inesperadas com a leveza de quem já perdeu as ilusões, mas ainda cultiva espanto. Cada história revela uma dobra do cotidiano que, aos olhos de Esti, se expande até o delírio: um tradutor que furta objetos sem perceber, uma palestra sabotada por verdades incômodas, uma memória que se vinga do esquecimento. Com uma prosa precisa e maleável, Kosztolányi transita entre o burlesco e o filosófico sem perder a elegância. O riso que provoca não é barulhento — é o tipo que permanece no canto da boca, depois que a página já foi virada. Kornél Esti, mais do que um personagem, é uma pergunta disfarçada de homem: e se tudo aquilo que tomamos por verossímil for apenas o disfarce mais engenhoso da ficção?

E se Prometeu tivesse sido julgado por um tribunal minucioso e cheio de burocracia? Se os soldados de Troia se entregassem à fofoca ordinária enquanto esperavam o fim? Ou se um padeiro de Jerusalém relatasse, sem emoção, o milagre da multiplicação dos pães? Nestes vinte e nove contos curtos, Karel Čapek transforma episódios consagrados da história, da mitologia e da Bíblia em pequenas explosões de crítica e imaginação, desmontando solenidades com a leveza de quem não teme o riso. Cada história oferece uma inversão: os heróis vacilam, os santos hesitam, os sábios se contradizem. Nada aqui é profano — mas tudo é humanizado. Com ironia elegante e olhar afiado, Čapek retira o verniz dos relatos canônicos para mostrar a sua fragilidade, a sua engenhosidade e, sobretudo, o seu humor escondido. As narrativas, embora independentes, dialogam entre si como variações de um mesmo gesto: o de recontar para desconstruir, rir para entender, inverter para ver de verdade. Escritas entre as duas guerras mundiais, às vésperas da ascensão do nazismo, essas fábulas sutis ganham densidade sem perder o charme. São textos que provocam não por gritar, mas por sussurrar o incômodo — e, em meio à sátira, oferecem ao leitor uma chance rara: repensar o que considera eterno, rir do que parece intocável e encontrar lucidez no gesto lúdico de fabular contra o poder.

Em capítulos breves e incisivos, como flashes que se apagam antes de fixar o olhar, Iuri Tyniánov constrói a trajetória do tenente Quetange — um oficial de existência nebulosa, capturado por engrenagens administrativas que já não distinguem obediência de absurdo. Ambientada sob o reinado de Paulo I, a narrativa traça uma linha tênue entre a história e a farsa, onde a ação militar é apenas fachada para um labirinto de relatórios, protocolos e ordens tão aleatórios quanto inquestionáveis. O protagonista, figura quase anônima, é menos um agente do enredo do que um vértice através do qual se revela o funcionamento de um império onde o delírio é sistemático. Com uma linguagem econômica, quase telegráfica, Tyniánov desmonta as pretensões da ficção histórica tradicional. Seu estilo — de cortes secos e montagem cinematográfica — encena a própria impossibilidade de narrar o poder sem denunciar sua artificialidade. A partir de uma anedota verídica, o autor elabora uma crítica velada — e por isso eficaz — ao autoritarismo e à manipulação da memória oficial. Nada é narrado com grandiloquência: é na repetição do trivial, no descompasso entre os atos e seus efeitos, que a sátira se instala. Escapando à censura por sua ambiguidade formal, a obra se revela hoje como um marco precoce da modernização da prosa russa e uma aula de estilo sobre o que pode a literatura diante da opressão.

Mítia é um jovem entregue a uma paixão que, para ele, não conhece gradação: ama com intensidade silenciosa, com entrega solene, como se todo o seu corpo e pensamento estivessem absorvidos pela presença da mulher amada. Quando esse amor lhe é retirado, não por escândalo, mas por dissolução gradual, começa uma descida delicada e inexorável — uma espécie de decomposição da alma, que não encontra mais onde se apoiar. A narrativa, enxuta e de lirismo contido, jamais recorre a arroubos ou à dramaticidade fácil. Ao contrário: em cada gesto, cada pausa, cada deslocamento de luz, Búnin retrata o esvaziamento de Mítia com precisão quase clínica. É um texto sobre o amor, mas também sobre a impossibilidade de manter-se inteiro quando o amor se desfaz. Os eventos externos são mínimos; o drama, essencialmente interior. Exilado na França, o autor — primeiro russo laureado com o Prêmio Nobel de Literatura — escreveu esta novela como quem depura a memória e a forma. O cenário rural, as estações em trânsito, os silêncios entre os personagens, tudo converge para a sensação de fim, não apenas de uma relação, mas de um tempo emocional. A dor de Mítia não é excepcional: é exemplar. E, por isso mesmo, ecoa como verdade crua e atemporal.

Catierina Lvovna vive enclausurada entre paredes silenciosas, numa casa onde o tempo parece estagnar. Casada com um comerciante mais velho e indiferente, ela ocupa seus dias com o tédio domesticado das tarefas e a rigidez moral que lhe cabe como esposa de um patriarca. Nada em sua aparência antecipa o que se seguirá: uma sequência de rupturas que começa com o desejo e avança, passo a passo, até o irreversível. Quando se envolve com um subordinado da casa, sua paixão não se contenta em permanecer subterrânea. Ela começa a ocupar todos os espaços — primeiro no corpo, depois na ordem doméstica, e por fim na lógica social que a cerca. O que se inicia como transgressão sentimental desdobra-se em gestos extremos: impulsos que eliminam, um a um, os obstáculos entre Catierina e a posse do que acredita ser seu por direito. Narrada com sobriedade e precisão quase cruel, a história jamais oferece desculpas ou moralizações. Ao contrário, Leskov propõe um retrato brutal da engrenagem patriarcal que isola, humilha e silencia — e de como, dentro dela, o desespero pode florescer como força destrutiva. Sem artifícios psicológicos nem ornamentações românticas, esta novela instala sua tensão no que é dito com frieza e no que permanece suspenso, compondo uma das mais inquietantes personagens femininas da literatura russa.

Enviado ainda jovem a uma remota fortaleza nas estepes do sul da Rússia, Piotr Grinióv começa sua trajetória como oficial com um misto de apatia e obediência. Mas tudo muda quando conhece a filha do comandante e, ao mesmo tempo, vê-se subitamente arrastado pela grande convulsão política de seu tempo: a rebelião liderada por Emelian Pugatchóv, camponês que se apresenta como o legítimo tsar e põe em xeque o império de Catarina II. A narrativa, em primeira pessoa, flui com precisão lírica e economia quase clássica. Sem recorrer a heroísmos ou grandiosidades, Púchkin constrói um retrato íntimo de um jovem dividido entre fidelidade, compaixão e desejo — tudo isso diante de uma ordem social prestes a se romper. Os dilemas morais de Grinióv ganham densidade à medida que o absurdo e a violência da guerra tomam forma concreta, não em batalhas épicas, mas nos encontros, traições e gestos silenciosos que definem destinos. Mais do que um romance histórico, a obra propõe uma investigação sensível sobre identidade, lealdade e transformação. O amor que surge no meio da guerra, a hesitação diante da autoridade e a percepção de que os eventos públicos moldam o íntimo revelam um autor no auge do domínio estilístico. Última obra publicada em vida por Púchkin, o livro condensa o ponto de maturidade de sua prosa — e reafirma seu papel como fundador da literatura russa moderna.