Afrontando a lógica, o racional quase nunca se nos mostra tão instigante quanto poderia, não nos encanta, não consegue, enfim, cavar espaço num cérebro feito de labirintos, que se bifurca, se afunila e dá margem a pensamentos que escapam a qualquer noção de ordem. Quanto mais longe fica o homem do mundo, mais se aproxima de sua própria alma; seus enigmas, malgrado absorventes, tornam-se menos indóceis, e a vida até parece mais fácil, uma vez que põe-se mais alerta e não se flagra vítima dos delírios que ele mesmo teima em criar. “Os Esquecidos” aposta no lado ambivalente da natureza de cada um, tão cheio de luzes e sombras, de reentrâncias e saliências, subidas e declives, mantido a salvo da curiosidade quase sempre destrutiva de quem nos rodeia, mas que acaba sofrendo com circunstâncias em que o cerco se fecha a ponto de pensarmos que vivemos num universo paralelo, um lugar mágico e maldito onde não somos mais os personagens centrais da nossa própria vida. O filme de Joseph Ruben, sobre uma mulher atormentada pela morte do filho de nove anos num acidente de avião há catorze meses, é feito de detalhes que avançam numa direção, só para que, na iminência do desfecho, o diretor resolva interromper o fluxo e dar outra explicação ao mistério que se erigia. De um suspense psicológico marcante, o roteiro de Gerald Di Pego passa a um thriller de ficção científica pasteurizado, que fica de pé a custo.
Telly Paretta está paralisada num luto que a mantém encarcerada, remexendo fotos, assistindo a vídeos caseiros e manuseando objetos pessoais de Sam. Ela oscila entre a esperança de que tudo não passa de um pesadelo, ao fim do qual o menino há de voltar para o seu colo, e a certeza inconfessável de que ele está mesmo morto, como dizem-lhe todos os que a rodeiam. Esse é o gancho de que Ruben se vale a fim de ir desdobrando a ausência de Sam e seu impacto na saúde mental de Telly, que não faz nenhum esforço para sufocar a lembrança do filho. A certa altura, num jantar com o marido, Jim, de Anthony Edwards, o espectador fica sabendo que talvez Sam nunca tenha existido, e em assim sendo, Telly procura cercar-se de toda evidência que consegue quanto a não apenas provar que o trauma é real como também reaver o garoto. Ruben volta a clássicos a exemplo de “O Bebê de Rosemary” (1968) e “Repulsa ao Sexo” (1965), dirigidos por Roman Polanski, e “Quando Duas Mulheres Pecam” (1966), levado à tela por Ingmar Bergman (1918-2007), urdindo a defesa de Telly como alguém incapaz de suscitar a compreensão alheia, mas deixando no ar numa possível histeria de Telly, mais nítida depois que estabelece contato com Ash Correll, um vizinho cuja filha, Lauren, aparentemente também morrera no desastre.
Como se alguma maldição sobreviesse sem aviso, Ruben encadeia um erro atrás do outro, tão graves que nem a ótima química entre Julianne Moore e Dominic West repara. O mais imperdoável deles é sem dúvida abandonar o mistério psicológico e incluir fenômenos sobrenaturais para explicar o sumiço de Sam e Lauren, mas o desperdício de Alfre Woodard, na pele da detetive Anne Pope, é quase criminoso. O grande atributo de “Os Esquecidos” é um certo destemor de Joseph Ruben em dar essa guinada mesmo sabendo que ninguém aprovaria o resultado. Como diz a voz cava das ruas, não se pode mesmo ter tudo.
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