Renato Manfredini Júnior (1960-1996) era um lobisomem juvenil, mas quanta beleza, quanta graça, quanta majestade! “Tithonus” (1833), o poema de Alfred Tennyson (1809-1892) sobre Titão, príncipe de Troia, filho de Laomedon e Estrimão, a quem a deusa Aurora deu vida para além dos tempos, poderia ter sido composto para Manfredini, não fosse por ele ter ganho também a eterna juventude, embora mediante uma tragédia pessoal. Em “Somos Tão Jovens”, Antonio Carlos da Fontoura faz reviver a atmosfera do faroeste caboclo enunciado pelo Renatinho da Cultura (Inglesa), outro de seus apelidos, este por ter feito parte do quadro de professores da instituição entre 1978 e 1981. Até chegar ao célebre Russo, em memória do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1788) e do matemático britânico Bertrand Russell (1872-1970), passaram-se intermináveis quatro anos. Renato tinha com o mais inclemente dos carrascos da humanidade uma relação serena, de quem talvez soubesse que passaria à História apenas por ter ousado ser mais que um animal sentimental. A maioria não é nem isso.
“Somos tão jovens”, o verso mais famoso de “Tempo Perdido”, de Russo, lançada em 1986 no álbum “Dois”, ecoa ao longo dos 104 minutos da cinebiografia de Fontoura, embora o roteiro de Victor Atherino e Marcos Bernstein pontue mil referências às antológicas letras do músico. Aliás, é nos desvãos da memórias que o filme cresce. Quem conhece Brasília de uma ponta à outra do avião e além, capta, por óbvio, minúcias que fazem toda a diferença na compreensão do filme como um documento afetivo da geração Coca-Cola criada durante a ditadura militar (1964-1985) e imediatamente depois.
No prólogo, fotos da então Capital da Esperança, ainda sem o Congresso e muito mais poeirenta, acompanham imagens de carros da época e das superquadras da Asa Sul quase desertas; numa delas, a 308, Renato anda de bicicleta até sofrer uma queda, e acaba na mesa de cirurgia, com três pinos de titânio na perna. A epifisiólise, uma doença óssea que empurra o fêmur para a bacia, manteve Renato na cama tempo o bastante para que lesse bibliotecas inteiras, de O Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger (1919-2010), a Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1894-1963), passando por Edgar Allan Poe (1809-1849), Oscar Wilde (1854-1900) e Fernando Pessoa (1888-1935). Mas até que Renato conhecesse a fama que perseguia de modo quase clandestino (ou nem tanto) ele sonhou. E viveu como se sonhasse.
Fontoura concentra-se na carreira de Renato no Aborto Elétrico, a banda formada junto com Fê e Flávio Lemos, André Pretorius (1961-1988) e Ico Ouro-Preto, irmão de Dinho, o líder do Capital Inicial, oferecendo um panorama menos batido da jornada artística do ídolo do futuro Legião Urbana, que estourou já no primeiro álbum, em 1985, com “Será”, e teve o poder de catalisar os anseios de uma garotada sequiosa de democracia e liberdade com o lançamento de “Que País É Este”, em 1987. “Ainda É Cedo”, outra das baladas pós-punk do Legião, quiçá a mais querida pelos fãs, demora a surgir, porém coroa muito da personalidade errática do Trovador Solitário, errando, aprendendo, isolado nas multidões. Na pele do protagonista, Thiago Mendonça conduz um talentoso elenco de coadjuvantes ao lado de Laila Zaid, irretocável como Ana Cláudia Costa Silva, personagem ficcional que congrega as amizades de fé e os amores confusos de Renato, o narcisista, o humanista, o anacoreta, o romântico. Dessa Brasília eu tenho saudade, e não só no verão.
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