O filme que o algoritmo nunca vai te recomendar, mas que você precisa ver Divulgação / Sony Pictures

O filme que o algoritmo nunca vai te recomendar, mas que você precisa ver

Nas frestas mais íntimas da memória coletiva brasileira, há histórias que não se apagam, não porque tenham sido registradas, mas porque foram enterradas vivas. “A Vida Invisível”, dirigido por Karim Aïnouz e baseado no romance de Martha Batalha, não é apenas um filme sobre duas irmãs separadas. É uma carta não enviada, um grito abafado entre paredes que não escutam, uma partitura que jamais chegou a ser executada. No coração do Rio de Janeiro dos anos 1950, entre o tropicalismo exuberante e a brutalidade moral silenciosa, Guida e Eurídice Gusmão representam não só a mulher brasileira silenciada pela família, pelo Estado e pela tradição, mas a humanidade partida em dois, não por tragédias excepcionais, mas por rotinas socialmente sancionadas. O que separa essas irmãs não é um oceano, mas um pacto cotidiano de silenciamento, no qual o afeto é constantemente substituído por conveniência e obediência.

Ao desmontar com precisão o mito da família como espaço de acolhimento incondicional, o filme revela o quanto os laços consanguíneos, sob o jugo do autoritarismo doméstico, podem se tornar instrumentos de anulação. O pai, com seu orgulho de origem portuguesa e seu moralismo inflexível, não apenas desarticula o destino das filhas: ele reorganiza a realidade a partir de sua visão estreita de decência. Quando mente a Guida que Eurídice está na Europa, e omite de Eurídice o retorno da irmã, ele não está apenas manipulando informações, está sequestrando futuros. As cartas jamais lidas, os endereços que não se cruzam, os caminhos paralelos em uma mesma cidade: tudo isso compõe uma coreografia trágica de desencontros. E nesse labirinto urbano, a beleza tropical vira ironia cruel: o Cristo Redentor de braços abertos assiste, inerte, à separação de duas almas que jamais deixaram de se buscar.

Mas “A Vida Invisível” não se contenta em denunciar. Há, sob a superfície do luto e da repressão, uma pulsação persistente: o prazer que resiste, a música que sobrevive mesmo sem palco, o afeto que insiste mesmo quando não pode ser correspondido. Guida, abandonada e grávida, não se reduz ao papel de mártir. Ela transita entre a vulnerabilidade e a coragem com a naturalidade de quem compreendeu cedo que a sobrevivência exige alguma dose de alegria. Eurídice, presa em um casamento medíocre, não deixa morrer seu desejo de ser pianista, ainda que precise enterrá-lo entre panelas e silêncios. Ambas aprendem, cada uma a seu modo, que viver num mundo que exige submissão constante é um ato de resistência. O filme, nesse sentido, não celebra a dor: ele a ilumina para que não continue sendo confundida com destino.

Mais do que um drama de época, “A Vida Invisível” é uma operação de escavação emocional: desenterra as camadas de opressão estruturadas como normas e as confronta com a verdade crua da saudade, da injustiça e da renúncia forçada. E o faz com uma força visual e narrativa que recusa o sentimentalismo fácil, a emoção é conquistada, não imposta. O desenlace, que evita reencontros redentores, é justamente o que torna o filme tão devastador e honesto. As irmãs não se abraçam no final, mas o espectador, atravessado por aquela ausência irremediável, entende que o amor entre elas nunca cessou de existir, apenas foi impedido de ser vivido. Em tempos que ainda ecoam os códigos morais daquele passado, essa história é menos um alerta e mais uma convocação: há dores que não podem ser superadas, mas precisam ser vistas. Porque só o que é visto pode, enfim, deixar de ser invisível.

Filme: A Vida Invisível
Diretor: Karim Aïnouz
Ano: 2019
Gênero: Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★