Em “Homem com H”, o que se projeta na tela não é apenas uma biografia, mas uma espécie de incorporação audiovisual de um espírito indomável. Ney Matogrosso, figura que sempre escapou às categorias estanques da arte e da identidade, encontra neste filme um espelho à altura de sua complexidade: um espelho fragmentado, vibrante, íntimo e feroz. A história não se curva a convenções cronológicas nem se interessa por didatismos sentimentais; ela se lança, em espirais sensoriais, do coração da floresta atlântica ao delírio libertário dos palcos tropicais, da infância nebulosa ao ímpeto criativo que transcende décadas. Cada cenário, cada figurino, entre plumas, couro, brilhos e silêncios. constrói um território onde o delírio estético e a dor privada não competem, mas coexistem. Esmir Filho compreende que Ney não cabe em uma progressão linear de eventos: ele pulsa em interrupções, excessos e fragmentos, e o filme se permite esse mesmo privilégio.
Essa ousadia só encontra seu ponto de ancoragem definitivo na atuação hipnótica de Jesuíta Barbosa, que abdica da imitação para abraçar a transfiguração. O que ele realiza vai além do virtuosismo técnico: há uma escuta sensível e inquieta daquilo que Ney não diz, mas irradia sua entrega visceral, sua delicadeza bélica, sua presença que simultaneamente protege e expõe. Tal profundidade faz com que comparações com performances premiadas de biografias hollywoodianas sejam inevitáveis, mas talvez insuficientes. Porque o que Barbosa oferece não é apenas uma performance premiável, é uma experiência transformadora, que exige do espectador o mesmo risco de vulnerabilidade que Ney sempre exigiu de si. O restante do elenco, mesmo orbitando essa força gravitacional, mantém uma elegância rara: atuações marcantes que não rivalizam, mas sustentam a multiplicidade emocional que compõe a figura central.
É nesse mesmo campo de risco que o filme inscreve sua abordagem do corpo e da sexualidade: não como provocação gratuita, mas como dimensão inegociável de uma existência que sempre se afirmou pelo escândalo da autenticidade. As cenas de sexo explícitas, sim, e por isso mesmo honestas, não estão a serviço do choque, mas da coerência radical com o que Ney representa: um corpo político que canta, goza, desafia e transborda. Há quem acuse exagero, e talvez o seja, mas dentro de uma lógica onde o excesso é forma legítima de resistência. “Homem com H” não se preocupa em agradar um público hesitante; ele se oferece como experiência inteira, sem edulcorantes, e é justamente essa coragem que o transforma em algo maior do que um retrato fiel, é uma ode à possibilidade de ser múltiplo sem pedir licença. Ao final, não é apenas a música de Ney que ecoa: é a sensação de ter tocado, ainda que brevemente, a vertigem de uma liberdade quase impossível.
★★★★★★★★★★