Ney Matogrosso: um mestre sem discípulos

Ney Matogrosso: um mestre sem discípulos

Julio Maria é um dos mais qualificados críticos de música do país, ancorado no mar das páginas de “O Estado de S. Paulo”, e biógrafo de Elis Regina, maior cantora brasileira, ao lado de Gal Costa e, quem sabe, Bidu Sayão (Marisa Monte está chegando perto, muito perto.) Ney Matogrosso é um dos maiores cantores do país. No caso, deve ser visto como intérprete e cantor. Como assim? É que há cantores e intérpretes…

Ney Matogrosso canta muitíssimo bem, com uma voz que, sem deixar de ser masculina, aproxima-se da feminina. Mas o que importa mesmo é que, quando canta, a música passa a ser sua, porque a interpreta de modo diferente da versão convencional. Não há um Ney Matogrosso “standard”. Música, quando passa pela sua boca, deixa em parte de ser de quem a fez e passa a ser também do artista. Ele a recria. Pode-se dizer que, de algum modo, o intérprete “recompõe” a música — criando uma espécie de autoria, ou, mais precisamente, de co-autoria. Ezra Pound talvez dissesse sobre o brasileiro: é um reinventor. Um mestre sem discípulos.

Mutante? Camaleão? Ney Matogrosso é múltiplo e, por isso, é difícil abordá-lo de maneira unidimensional. O cantor escreveu sobre si mesmo no livro “Vira-Latas de Raça — Memórias”. A obra tem qualidade, mas é a versão unilateral (e unidimensional) do artista. A biografia escrita por Julio Maria deve, por certo, incluir nuances, versões diferentes para os fatos marcantes da vida do artista, como sua participação nos Secos & Molhados e o relacionamento com o cantor e compositor Cazuza.

Explicar Ney de Souza Pereira (nome que não existe para o público), que fará 80 anos em agosto (parece ser muito mais jovem, e, de alguma maneira, é), é mostrar sua identificação e sua especificidade na música patropi. Portanto, a biografia é, certamente, uma história da música popular brasileira entre os séculos 20 e 21. Ney Matogrosso surge, firma-se e deixa sua marca.

Um senão: o título, “Ney Matogrosso — A Biografia”, sugere uma “arrogância” editorial, que, possivelmente, não é de Julio Maria. Sobre um artista ainda vivo e em atividade, e sobre o qual se pesquisará muito mais, o mais preciso seria escrever “Ney Matogrosso — Uma Biografia” (Companhia das Letras, 512 página). Biografias, como sabem pesquisadores conscienciosos, mesmo quando excelentes, são sempre provisórias.