Há um gesto pequeno — aparentemente banal — que ocorre quase sempre em silêncio. A mão segura o lápis ou a caneta com leve hesitação, depois risca a linha, curva-se entre as palavras, destaca uma frase como quem salva algo de um afogamento iminente. Sublinhamos porque algo ali pulsa. Porque há, naquele trecho, um eco íntimo, uma centelha de sentido que não se quer deixar escapar. Mas e se esse impulso — aparentemente tão doméstico, tão escolar, tão antiquado — escondesse um efeito muito mais profundo? Um efeito que começa no papel, mas termina no cérebro. Ou melhor: que continua ali dentro, reorganizando lentamente o modo como percebemos, lembramos e até como envelhecemos.
Pesquisadores de Harvard, em parceria com instituições como o Center for Cognitive Aging da Universidade da Flórida, vêm rastreando há mais de uma década os impactos do envolvimento ativo com a leitura — e os achados são, no mínimo, intrigantes. Leitores que não apenas passam os olhos pelas páginas, mas que sublinham, anotam, conversam com o texto, apresentam padrões mais robustos de preservação cognitiva ao longo da vida. Seus exames cerebrais indicam uma manutenção mais eficaz da densidade sináptica em regiões associadas à memória de longo prazo e à atenção executiva. Não se trata de um milagre cerebral. Mas talvez de um tipo muito sutil de resistência.
A explicação, embora complexa, repousa sobre uma lógica quase intuitiva: quando o leitor sublinha, ele estabelece uma relação metacognitiva com o que lê. Ou seja, pensa sobre o próprio ato de pensar. Está em diálogo. Sai da passividade. Cria pequenos mapas neurais de relevância, reforçando conexões, favorecendo a consolidação da informação — e, por extensão, retardando o desgaste natural de estruturas cognitivas. Segundo um artigo publicado na Scientific American, essa prática parece ativar o chamado “modo difuso” do cérebro, uma espécie de estado de atenção aberta e reflexiva, crucial para o aprendizado profundo.
Mas há mais. Estudos observacionais vêm mostrando que leitores que mantêm esse tipo de envolvimento ativo com os livros tendem a apresentar menores índices de depressão na velhice, maiores níveis de empatia e uma curiosa persistência de traços narrativos na linguagem cotidiana — mesmo em estágios iniciais de declínio cognitivo. Ou seja, essas pessoas continuam se referindo ao mundo por meio de imagens, referências simbólicas, construções com começo, meio e fim. Em outras palavras, continuam contando histórias. Mesmo sem perceber.
Não se trata apenas de um hábito técnico. Há, nesse tipo de leitura, uma forma de presença. Uma recusa suave à automatização. Um desacato gentil ao esquecimento. Ao sublinhar, o leitor imprime não só uma marca na página, mas também uma decisão: “isso importa”. E essa simples escolha, repetida ao longo da vida, parece educar o cérebro a priorizar, a distinguir, a cuidar. Como se o ato de marcar palavras fosse, também, um treino emocional para a vida que escapa — e para a que se quer manter.
Há uma beleza inesperada nisso. O sublinhador, figura discreta entre leitores, é também alguém que estabelece vínculos. Que guarda. Que revisita. Que transforma a leitura em memória tangível, em conversa prolongada. Um parágrafo assinalado em um livro lido vinte anos antes pode, de súbito, devolver uma época inteira. Uma voz. Uma dúvida. Um amor. A literatura, nesse contexto, deixa de ser apenas objeto de contemplação e passa a ser um modo de registro emocional e neural.
O fenômeno não se restringe a gêneros específicos. Leitores ativos são encontrados tanto entre os que devoram romances quanto entre os que vasculham tratados filosóficos. O que importa não é o que se lê, mas como se lê. A diferença não está na sofisticação do texto, mas no tipo de relação que se estabelece com ele. E nesse ponto, a ciência e a literatura — que por tanto tempo pareceram opostas — começam a se aproximar, como dois lados de uma mesma ideia: a de que prestar atenção, de fato, transforma.
Pode soar exagerado — quase poético demais — afirmar que sublinhar um livro prolonga a vida mental. Mas a neurociência, com seus gráficos e imagens coloridas do cérebro em ação, está começando a validar o que leitores antigos já sabiam em silêncio: que ler com o corpo, com a caneta, com o tempo, é uma maneira de durar mais. De resistir com doçura. De envelhecer com histórias sob a pele.
E se há alguma forma de longevidade que faça sentido, talvez seja essa: aquela em que a mente, mesmo diante da decadência inevitável, continue a se lembrar do que importa. Porque alguém, um dia, sublinhou.