Reconhecermo-nos falhos, suscetíveis a toda sorte das tantas intempéries da vida, é, por si só, uma arte. À medida que vivemos, descobrimos, uns com mais dificuldade que outros, que temos todos a capacidade de abandonar o caminho pelo qual íamos gostosamente nos perdendo e refazer o percurso, do começo, se necessário. As luzes e sombras, reentrâncias e saliências, altos e baixos, toda a dialética que pode haver no espírito do homem liberta-nos da perdição que nunca deixa de espreitar a natureza humana, mas lança-nos também no limbo de realidades suspeitas que, eivado de fantasia a mais nefasta, nos conduz por entre tantos outros abismos, mais rasos e mais fundos, universo paralelo e mágico, santo e diabólico, onde se dão crimes de toda sorte, mocinhos e vilões trocam de roupa e de lugar sem nenhuma cerimônia, arrevesa-se a essência dos sentimentos e atira-se ao fogo o que deveria ser guardado e ficar para sempre, porto seguro para navegantes cansados dos mares procelosos da descrença de tudo.
Os vaqueiros americanos entram nessa equação como sacerdotes laicais e bárbaros da terra, mestres na alquimia de fazer do talento em lidar com o lado mais primitivo da natureza uma qualidade prezada não só por quem os rodeia, mas por sua nação como um todo, sendo ainda hoje uma peça fundamental no mecanismo gigantesco, complexo e implacável que é a economia dos Estados Unidos. O problema é que, da mesma forma como também acontece em outros segmentos da sociedade na América, seu prestígio e mesmo sua presença foram gradualmente apagados da história, restando apenas a sombra de uma época distante em que foram encarados sob a perspectiva dos grandes desbravadores que continuariam a ser, não obstante sua grandeza e mesmo o espaço físico que um dia ocuparam já fossem uma imagem pálida no horizonte da memória.
Os episódios inescapavelmente belicosos protagonizados por esses homens no transcurso de 250 anos — desde 4 de julho de 1776, quando os Estados Unidos declararam sua independência da metrópole inglesa de maneira unilateral, até hoje, e mais fortemente a partir de 3 de setembro de 1783, quando sua vontade de ser livre os catapultou à vitória e se viram, afinal, livres do domínio de Jorge 3° (1738-1820), rei da Grã-Bretanha e da Irlanda —, harmonizados aos trancos e barrancos à custa de sangue, suor, lágrimas e o aço dos revólveres e espingardas, quase sempre tinham por norte a defesa intransigível da liberdade, conceito que a Carta Magna dos Estados Unidos fez questão de incluir em trechos diversos, inclusive na controversa e algo cínica busca da felicidade, embora o raciocínio, por natureza tão volúvel, perca-se e degenere em justificativa para a intolerância, o ódio e o derramamento de sangue, expediente inadmissível sob qualquer hipótese num território que se pretende regido pela higidez solar da democracia. Senhora das angústias mais profundas do homem, de onde emanam-lhe os sonhos mais doces, a liberdade se nos apresenta sob formas as mais inconcebíveis à razão; contudo só faz sentido se contempla o que existe de mais lindo na condição humana, sua pluralidade.
O que não tem explicação, o que não tem nome, muito do que a razão não alcança, pauta a narrativa dos dez filmes que compõem a lista abaixo, protagonizados por homens que, bem ou mal, encarnam o arquétipo do salvador americano, encravado em planícies entre montanhas a perder de vista, longe do mar e do céu e banhadas por um dourado que, por si só, já serve-nos de recompensa. Em “Joe Kidd”, John Sturges (1910-1992) dá a sua contribuição para que um homem cristalize de vez sua imagem como a alma do faroeste — e do próprio cinema americano pós-moderno. Nesses enredos de amor à pátria, que não raro descambam em misoginia, xenofobia, ódios implacáveis e hereditários, e sangue, muito sangue — páginas da História que merecem o repúdio de gente civilizada, decerto, mas não podem ser reescritas ou apagadas —, Clint Eastwood põe no chinelo muito mocinho e quase todos os super-heróis que certos estúdios empurram goela do público abaixo neste tolo e muito mais violento século 21, sem que ninguém ao menos pigarreie. Outros nove títulos, elencados do mais recente para o lançado há mais tempo, também figuram neste compêndio brevíssimo, sendo dois de Sergio Leone (1929-1989), o mestre por excelência do gênero, “Era uma Vez no Oeste” (1968) e “Três Homens em Conflito” (1966). Lembranças de um cinema talvez mais bruto, porém decerto muito mais autêntico.

Personagens imbuídos de um desejo de retaliação, que se atiram sem medo a uma jornada contra quem desestabilizou a harmonia do seu lar mediante um crime e maculou a honra de sua família com o sangue de um inocente nunca serão demais no cinema. A premissa se mostra verdadeira no momento em que se começa a listar algumas produções que se aprofundam sobre o argumento do acerto de contas, caso de “O Regresso” (2015), do diretor mexicano Alejandro González Iñárritu, provavelmente o filme mais impactante no gênero, com um herói que não sai um milímetro da linha, ainda que seja ultrajado de todas as maneiras possíveis. Malgrado também busque reparação pela desgraça que se abate sobre ele, o protagonista de “Vingança e Castigo” não tem nada de bom moço. A trama, debute de Jeymes Samuel no comando de um longa — Samuel já havia feito o curta-metragem “They Die by Dawn”, em 2013 —, não é um primor de inovação quanto ao gênero, mas o diretor se empenha em conduzir seu elenco afinado rumo a um épico de faroeste, uma das gratas surpresas de 2021, dada a originalidade com que constrói sua história. Sem dúvida, Jonathan Majors é uma das razões do sucesso do filme. Dando vida a Nat Love, o líder de uma gangue que assistira à morte brutal dos pais por Rufus Buck, do também ótimo Idris Elba, Majors revela, enfim, uma faceta de seu talento que passou batida para outros realizadores.

A relação entre dois tipos que deveriam se repelir e se odiar é o ponto de partida do diretor irlandês Ivan Kavanagh em “Terra Sem Lei” (2019), western sobre as tantas contradições humanas num lugar sem esperança, amaldiçoado pelos mais baixos apetites da matéria. Kavanagh se inspira em ninguém menos que no Sérgio Leone (1929-1989) de “Por Um Punhado de Dólares” (1964), que por sua vez nasceu da adaptação de “Yojimbo” (1961), dirigido por Akira Kurosawa (1910-1998). Aqui, como na mexicana San Miguel idealizada por Leone, o ambiente também resta subitamente pequeno para a lei e os interesses escusos de figuras como o caubói sem nome vivido por Clint Eastwood, talvez o papel em que tenha flertado mais desabridamente com a zona cinzenta que separa mocinhos de vilões. Era nela que Eastwood se movia, da mesma forma que o personagem central do trabalho de Kavanagh, um sujeito que se mostra pouco afeto a sutilezas retóricas como moral, ética ou decoro — até porque o cenário que o rodeia liga-se estritamente a essa realidade de anomia, por mais que não se possa nunca admitir qualquer justificativa para a barbárie.

O western antes do western. Essa poderia ser uma definição um tanto reducionista de “O Regresso”, que proporcionou a Leonardo DiCaprio o grande papel de sua carreira, ainda não superado — pelo qual também recebeu o Oscar de Melhor Ator. “O Regresso” expõe parte das chagas de um país feito de sangue, de caçadores, de mercenários, de índios, de homens infaustos que se deixavam iludir pelas promessas de algum dinheiro, mediante muito sacrifício, muita renúncia e muita humilhação. Um dos filmes que melhor disserta sobre os infortúnios dos primeiros ianques é dirigido por um mexicano — outra das tantas ironias que o cinema nos prega. Alejandro González-Iñárritu enxergou na narrativa, adaptada do romance de Michael Punke, publicado em 2002 e nunca lançado no Brasil, a possibilidade de falar dos Estados Unidos como poucos o conhecem. El Negro, como o chamam em Hollywood, conduz a trama a partir da biografia de Hugh Glass, um caçador que sobrevive à ofensiva de uma ursa parda que defendia seus filhotes, é dado como morto, abandonado, sepultado vivo, mas volta do inferno, sedento por vingança. González-Iñárritu e sua equipe se debruçaram sobre a vida muito particular de Glass por cerca de um ano, filmando em locações no Canadá e privilegiando o emprego da luz natural, um dos grandes trunfos da produção e mérito de Emmanuel Lubezki, ganhador do Oscar de Melhor Fotografia por “Gravidade” (2013), em 2014, “Birdman” (2014), em 2015, e, claro, “O Regresso”, em 2016, o único a conseguir uma estatueta na categoria por três edições consecutivas.

Num tempo distante, em que certos homens concentravam toda a autoridade de um território anárquico, sem cercas ou muralhas na fronteira entre os Estados Unidos e o México, cada grão de areia, cada folha de cacto, cada escarpa de rocha guardava uma razão para os conflitos protagonizados pelos vaqueiros americanos. Celebrado por peças de fina artesania pós-moderna a exemplo de “Johnny and June” (2005), e o recente “Um Completo Desconhecido” (2024), uma biografia autorizada sobre Bob Dylan, James Mangold decifra alguns códigos do faroeste, transformando o conto “Three-Ten to Yuma” (“às três e dez para Yuma”, em tradução livre; 1953), de Elmore Leonard (1925-2013) — já levado à tela por Delmer Daves (1904-1977) em “Galante e Sanguinário” (1957) — na saga de um homem alquebrado pela vida, mas disposto a lutar pelo que lhe pertence.

Cada grão de areia, cada folha de cacto, cada escarpa de rocha guarda um pouco dos episódios inescapavelmente conflituosos protagonizados pelos vaqueiros americanos no transcurso de 250 anos, harmonizados aos trancos e barrancos à custa de sangue, suor, lágrimas e o aço dos revólveres, sempre em defesa da liberdade — sobretudo a sua própria. Mesmo a Constituição dos Estados Unidos inspira-se nesse arrojo dos caubóis, malgrado esse conceito, por natureza tão ambíguo, perca-se e degenere muitas vezes em justificativa para a intolerância, o ódio e o derramamento de sangue. O que se vê em “Os Imperdoáveis” é mais um dos tantos shows de interpretação de um ator começando a envelhecer, mas ainda no auge da potência física e da maturidade no ofício que escolheu, talvez o único em muitos anos a reunir essas duas qualidades fundamentais em seu ofício por quase setenta anos agora, e contando. Aqui, Eastwood dá uma de suas tantas provas quanto à dificuldade de se pregar rótulos em quem quer que seja, tanto mais se o objeto em questão forem brucutus de século e meio atrás.

Lawrence Kasdan e o irmão, Mark, dispõem de seus personagens com toda a serenidade — até que o aço comece a estalar. A clássica sequência da travessia a cavalo de um curso d’água caudaloso e com palmo e meio de profundidade esconde muito do que o diretor quer com Silverado, que vai se revelando, a despeito das fórmulas mais ou menos surradas, um filme refrescante. Gradativamente, vai avultando um mistério em torno da figura de Paden, o forasteiro encontrado seminu e desfalecido na estrada que conduz ao povoado onde o oeste distante respira. Ele é Leavenworth, não se sabe se no Kansas ou em Washington, estado do noroeste americano, mas em um ou outro caso, andou muito até acabar caindo ali. Kevin Kline capta a aura de segredos obscuros e inadequação de seu personagem, e cenas como a que registra Paden esforçando-se por se ajustar ao novo habitat, tentando comprar uma boa arma, mas levado a se contentar com uma pistola de segunda mão encerram uma comicidade involuntária que nos deixa mais compadecidos que vexados com a situação — para não mencionar a sempiterna paranoia armamentista só americano tranquilo, apenas sugerida aqui, por natural.

É claro que não se pode tomar o que acontecia nos Estados Unidos entre os séculos 18 e 19 à luz do politicamente correto — nem mesmo nas então metrópoles e hoje megalópoles Nova Amsterdã, rebatizada de Nova York, e Fort Dearborn, a não menos glamorosa Chicago de nossos dias —, e essa é a regra de ouro dos westerns. Revirando os segredos entre envergonhados e preciosos desse país fascinantes e do povo inspirador e que o fundou e o habita, John Sturges (1910-1992) eleva “Joe Kidd” à categoria de um tratado sociológico bastante sui generis e completamente desabotoado do dia a dia no vila de Sinola, perdida num recanto qualquer nas imediações com o México. Sturges aproveita bem os ventos de liberdade que sopravam naquele distante 1972 para carregar nas tintas do discurso ufanista, empregando para a tarefa a mais americana das celebridades de Hollywood — e uma das mais talentosas. O que se vê em “Joe Kidd” é mais um dos tantos shows de interpretação de um ator no auge da potência física e da maturidade artística, talvez o único em muitos anos a reunir essas duas qualidades fundamentais em seu ofício por mais de meio século.

O que mais salta aos olhos em “Meu Ódio Será Sua Herança” é a ausência de cercas e muralhas na fronteira entre os Estados Unidos e o México. Assim mesmo, a falta de grandes novidades no filme de Sam Peckinpah (1925-1984) não empana o brilho do cineasta, um dos mais prolíficos da velha Hollywood, e neste, o diretor sabe muito bem o que deve fazer para manter o interesse do público. Peckinpah lida com limitações parecidas com as de mestres do gabarito do John Schlesinger (1926-2003) de “Perdidos na Noite” (1969) ou do John Huston (1906-1987) de “O Tesouro de Sierra Madre” (1948) no gênero inaugurado por Edwin S. Porter (1870-1941) com “O Grande Roubo do Trem” (1903), mas se sai galhardamente, seguro ao conduzir seu longa pela espiral de reviravoltas algo grandiloquentes que encantam a audiência. O diretor e o corroteirista Roy N. Sickner (1928-2001) absorvem do texto de Walon Green a natureza dos anti-herói no tempo das diligências, retratando com fidedignidade o caos de uma terra sem lei.

Quanto mais o tempo passa, mais se tem clara a superioridade artística de Sergio Leone (1929-1989). O diretor soube como poucos tirar poesia da árida vastidão mórbida do Velho Oeste e seus sujeitos coléricos flagelados por dilemas morais de dificílima solução, amores feitos de barreiras físicas e dos obstáculos impostos pelos costumes, homens poderosos que não hesitam em atropelar a frágil lei daqueles territórios para ter um punhado de dólares a mais. “Era uma Vez no Oeste” é decerto o trabalho no qual Leone melhor aliou a tensão dramática ao deslizar melífluo das horas nos confins da América dos anos 1870. Com calma, sem nenhuma pressa, vão despontando os tantos conflitos de que o diretor quer falar através do roteiro assinado com os grandes Dario Argento e Sergio Donati (1933-2024). Leone dispõe de todos os recursos que pode para conferir beleza a suas histórias, e aqui, a trilha sonora de Ennio Morricone (1928-2020) pontua momentos de violência iminente e respiros cômicos ou quase românticos de modo a criar a atmosfera ideal para que o espectador urda conclusões adequadas ou tolas sobre o que vem a seguir. Juras de morte, terras sem dono, pistolas cuspindo chumbo, trens abarrotados de forasteiros à cata de seu quinhão de ouro, adultérios, planos de vingança: “Era uma Vez no Oeste” entra em cada um desses tópicos para uni-los na virada do primeiro para o segundo ato, quando a audiência já se deleita com a condução caótica e cheia de método, típica de Leone, com a qual ele trata de esticar a corda o quanto pode e destrinchar o fio narrativo, mas só até certo limite.

A grandeza de Sergio Leone (1929-1989) atravessa o tempo sem cerimônia. Copiado até hoje (e cada vez mais), o diretor sabia como poucos traduzir a vastidão poeirenta e mórbida do Velho Oeste em dilemas morais quase insolúveis, centrados em sujeitos coléricos, e nenhum outro de seus excelentes trabalhos captou com tanta fineza de espírito a dura vida daqueles homens tortos como “Três Homens em Conflito”. O cenário agiganta-se ao passo que os personagens parecem menores tomada após tomada, graças à preferência de Leone por enquadramentos grandiloquentes, uma sua marca bastante conhecida, sensação que torna-se mais nítida diante do silêncio incômodo de algumas cenas, tudo milimetricamente urdido como uma maneira nada óbvia de questionar a liberdade de que eles julgavam usufruir.