No mundo ideal, famílias só começariam depois de observados alguns passos elementares. Duas pessoas solteiras, adultas, independentes e desarmadas se conheceriam, passariam dias em conversas tão ridículas quanto imprescindíveis, trocariam beijos, carícias, firmariam compromisso e, só então, pensariam em filhos — que talvez não viessem. Na vida como ela é, entretanto, o estado intermedeia o encontro daqueles que, por uma ou outra razão, cumpridas ou não essas etapas, não alcançam o sonho da maternidade e da paternidade, e, finalmente, um núcleo familiar nutrido por correntes de genuíno afeto, acima até mesmo do onipresente sangue, estaria pronto.
A estranheza de “A Avaliação” não é tão diferente de muitos filmes sobre o futuro de nossa espécie, salvo por incluir na equação a inexorabilidade dos avanços da ciência, uma bênção e um flagelo a depender de quem os conduza. Fleur Fortuné acerta em cheio ao mirar os eternos desejos e insatisfações humanos, busca que nem sempre termina bem. O ótimo texto dos roteiristas John Donnelly, Nell Garfath Cox e Dave Thomas acha eco numa das grandes agonias da contemporaneidade, majorada por nosso ímpeto profano de emular a onipotência divina.
Ter filhos é a maior aventura a que alguém pode se lançar, e por eles decerto se aprende logo que a fronteira do tolerável vai se alargando quase indefinidamente, até que outra vez comecem as pequenas chantagens, os berros estridentes, as tentativas frustradas de convencimento, para o banho, para a alface, a observação preocupada do que entra e, principalmente, do que sai da criança, prazeres de que mães e pais, nessa ordem, não abdicam e dizem ser o Céu na Terra. Com toques de “O Iluminado” (1980), a obra-prima de Stanley Kubrick (1928-1999), Fortuné fala de Mia e Aaryan, o casal de cientistas vivido por Elizabeth Olsen e Himesh Patel que resolve providenciar um descendente para, entre outros motivos, “experimentar uma sensação de pertencimento” na casa minimalista à Mondrian em que habitam.
E esse é o gancho de que a diretora está sempre a se valer a fim de justificar os absurdos a que os dois sujeitam-se até que sejam autorizados a gerar uma nova vida, processo de que se encarrega Virginia, a representante da nova ordem que se instalou no planeta, que despacha os rebeldes e os inadequados para o Velho Mundo. Mais uma vez, Alicia Vikander apresenta um irretocável de composição de uma vilã dissimulada parida pelo falso progresso tecnológico, muito semelhante ao que se constata na Ava de “Ex-Machina: Instinto Artificial” (2014), de Alex Garland, e ainda assim bastante original. Se fosse por ela, “A Avaliação” já seria um tiro certeiro, e um Oscar cairia bem.
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