O livro mais perturbador da história nasceu em 1866 — e ainda assombra leitores em 2025

O livro mais perturbador da história nasceu em 1866 — e ainda assombra leitores em 2025

Dostoiévski é pop, ou, melhor, Dostoiévski continua pop. De quando em quando, o russo sai do ostracismo a que a ignorância pós-moderna o condena e vira tema de filmes, peças de teatro, letras de músicas, exposições — ainda que nem sempre à altura de seu gênio. Dostoiévski talvez seja dos escritores mais aferrados à dúvida de que se tem conhecimento, e tudo nele remonta a incertezas atávicas, as mesmas que sustentam e arrasam o espírito do homem desde o princípio dos tempos. É bem provável que tenha sido o novelista americano William Faulkner (1897-1962) a defini-lo mais acertadamente. Para Faulkner, Dostoiévski era como o vagalume, que ilumina muito pouco quando pisca, malgrado sua luz pequena torne visível as trevas em que debate-se o homem. A vontade de uma aproximação com o mais filosófico dos escritores junta o Alfred Hitchcock (1899-1980) de “Festim Diabólico” (1948) e o Woody Allen de “O Homem Irracional” (2015), em mais uma prova de que tudo quanto tem valor acaba encontrando seu espaço pelos olhos de quem sabe ver. Obras-primas a exemplo de “Crime e Castigo” podem aparentemente sumir, mas voltam antes do que se espera, ainda mais vigorosas, porque sempre há de existir em alguma parte uma alma que sofre.

Mikhail Bakhtin (1895-1975) talvez tenha sido o intelectual que mais próximo chegou de conhecer Dostoiévski, não se sabe se porque russo também, ou por igualmente ter ido parar na cadeia por “crime” de opinião. Em seu “Problemas da Poética de Dostoiévski” (1963), o filósofo e linguista defende um aspecto relevante sobre os tipos elaborados pelo autor, que sabia como poucos assinalar qualidades e defeitos de seus personagens, aquelas misturadas a esses, conferindo significado único ao desespero que rege a vida terrena. Para Bakhtin, considerar o homem a reprodução da imagem de Deus é que é a verdadeira heresia. O homem poderia ser tomado como uma criatura à semelhança do Todo-Poderoso por sua essência polifônica, algaravia de vozes dissonantes berrando num espírito irrequieto, sem se importar com o que seria certo nem errado, apenas levantando e derrubando hipóteses, tentando manter-se vivo no mundo, um lugar hostil e limitado demais, para ao fim de tudo, poder habitar o Reino dos Céus. Se merecer.

Crime e Castigo
Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski (Editora 34, 592 páginas, tradução de Paulo Bezerra)

No mais conhecido dos romances de Dostoiévski, Rodion Românovitch Raskólnikov, um estudante sem posses e descoroçoado, perambula pelas ruas de São Petersburgo, esforçando-se por fugir da infernal tentação de se entregar à insânia e derramar sangue para provar sua superioridade ante uma velha agiota. Todos têm direito a um momento de loucura, ele considera, mal de que nem vultos da História como César ou Napoleão escaparam. Só mesmo Dostoiévski poderia, a partir de diálogos cortantes em sua aspereza e cenas brutais, chegar à elucubrações filosóficas sofisticadas acerca da opressão silenciosa a rodear os homens invisíveis da Terra, encarnada por tiranos que passam por inocentes senhoras ocupadas em acumular o vil metal quando ganhariam mais cuidando da salvação de sua alma. Ao executar o plano de assassinar a velha, raro momento em que o oprimido consegue levantar-se contra o opressor, Raskólnikov pensa estar poupando a humanidade de uma criatura desprezível, repulsiva, que de fato merece ser sacrificada, uma vez que não produz coisa alguma e ganha a vida explorando pobres-diabos feito ele. Dostoiévski, por evidente, atira um pouco mais de lenha à fogueira ao incluir na cena a irmã da agiota, que viu tudo. Raskólnikov terá de livrar-se também dela.

O mais cínico dos verdugos permite que nos locupletemos com o confortável sofisma que esconde uma promessa qualquer de felicidade, sendo que o gênero humano está essencialmente condenado a perseguir a quimera de ser feliz, já que o mundo é, como na caverna de Platão (428 a.C — 348 a.C), só um simulacro das projeções muito íntimas de cada um, de conceitos eivados de nossas idiossincrasias as mais diversas, que por seu turno mantêm-nos mais e mais encafuados em nossos sonhos e delírios. Raskólnikov torna-se seu próprio carrasco, ao não ser capaz de digerir a culpa pelo duplo homicídio e, mais importante, entender-se como muito pior que suas vítimas.

A chegada de Sônia, uma jovem prostituta cujo caráter fora forjado na carência da matéria e na abundância da genuína riqueza, e de Porfíri, um investigador cético e intuitivo, desestabilizam o protagonista cada qual a seu modo, iluminando novamente a discussão acerca do delito de Raskólnikov, que, como sugere o título, recebe a devida punição, num campo de forçados na Sibéria. A pobre Sônia, a indigna Sônia, é quem desperta em Raskólnikov a ânsia por redimir-se e renascer, como um Cristo profano. Argumento sobre o qual Dostoiévski torna a se debruçar em “Os Irmãos Karamázov” (1879) e “O Jogador” (1866), nessa ordem.

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.