A obra-prima de Denzel Washington, considerada um dos melhores filmes da história do cinema moderno, acaba de chegar ao Prime Video Divulgação / Eagle Films

A obra-prima de Denzel Washington, considerada um dos melhores filmes da história do cinema moderno, acaba de chegar ao Prime Video

“Malcolm X” é um monumento épico. Poucas vezes na história do cinema, alguém foi tão diligentemente minucioso quanto Spike Lee na elaboração de um personagem, e as mais de três horas de duração do filme explicam apenas parte do fenômeno. Lee consegue penetrar nas muitas camadas de Malcolm Little (1925-1965), um garoto de classe média de Omaha, Nebrasca, no centro-norte dos Estados Unidos, que perde tudo, menos a capacidade de se rebelar. A morte do pai, Earl Little (1890-1931), um pastor batista que defendia o ideal separatista do jamaicano Marcus Garvey (1887-1940) e sustentava mulher e oito filhos como carpinteiro, além de participar das reuniões da UNIA, a Associação Universal para o Progresso Negro, foi o choque de realidade de que o garoto Malcolm (não) precisava para dar-se do sistema de castas, semelhante ao que continua a vigorar em certas regiões da Índia — embora oficialmente abolido pela Constituição do país, promulgada em 1950 —, e que na prática interdita a mobilidade social de afro-americanos. Malgrado fosse o primeiro da turma, seus professores aconselhavam-no a buscar por ofícios em que pudesse trabalhar com as mãos, a exemplo da própria carpintaria, “exercida também por Jesus”, e essa dissociação flagrante entre o que poderia ser e o que deixavam que ele fosse começou o processo de autoconhecimento que o fez líder de uma revolução. Com tudo quanto de bom e de ruim, de libertador e de violento que uma revolução traz.

O assassinato de Earl define os rumos de Malcolm e dos irmãos, divididos em lares provisórios, porque a mãe, Louise Little (1897-1991), não conseguia manter sozinha a prole. Lee e os corroteiristas Alex Haley e Arnold Perl tratam do assunto a partir de uma cena em que a casa da família é atacada no meio da noite por homens da Legião Negra, uma dissidência ainda mais cruenta da Ku Klux Klan, em cavalos e capuzes brancos; mais tarde, Earl, interpretado por um sempre contido Tommy Hollis (1954-2001), leva uma surra e é deixado nos trilhos de uma estrada férrea em Lansing, Michigan, onde eles estavam morando, para ser estraçalhado pelo comboio.

O corpo quase é dividido em dois, mas Earl resiste algumas horas, e Malcolm participa do calvário do pai, junto com toda a comunidade. A imagem do martírio familiar dilui-se aos poucos, e o enredo avança para Nova York, onde ele primeiro trabalha como carregador; Lee não se furta a registrar o envolvimento de Malcolm com o submundo do Harlem, e aqui estão as melhores cenas do longa. A carreira criminal de Red, seu novo apelido, como traficante e proxeneta, vem sob a forma de sequências nas quais o diretor primeiro glamouriza o passado duvidoso de seu biografado, no final dos anos 1940, para depois dar a justa dimensão do que isso significou para ele depois. Malcolm é preso e, condenado, pega um ano pelos roubos e sete por tê-los cometido em associação com mulheres brancas. E é no xadrez que ele, afinal, torna-se quem sempre deveria ter sido.

Em mais uma de suas performances inesquecíveis, Denzel Washington incorpora Malcolm X buscando no personagem algum frescor, qualquer coisa sobre ele que o público não saiba ou, mais provável, somente intua. Se na primeira fase, Washington arranca risadas ao escancarar a porção mundana de Malcolm X, em ternos vermelhos que fazem-no parecer uma entidade da umbanda, depois da experiência no cárcere, quando conhece os textos de Elijah Muhammad (1897-1975), converte-se à doutrina islâmica e passa a adotar o nome de Malik el-Shabazz, a composição do protagonista adquire uma sobriedade que até mascara a vocação guerrilheira daquele homem forjado pela mágoa, nesse particular fundamentalmente distinto de seu homólogo mais famoso, o reverendo batista Martin Luther King Jr. (1929-1968), e bastante próximo do pugilista Cassius Clay (1942-2016), seu amigo, que também muda de identidade e passa a atender por Muhammad Ali depois da filiação ao islã. Angela Bassett na pele de Betty Shabazz (1934-1997) ajuda a conferir um tanto mais de mansidão a uma figura obnubilada pela cólera racialista da América, um espírito livre que não aceitava grilhões por não ter nascido com a cor certa.

Filme: Malcolm X
Diretor: Spike Lee
Ano: 1992
Gênero: Biografia/Drama
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.