O deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati: a ilusão do tempo e a tragédia da espera

O deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati: a ilusão do tempo e a tragédia da espera

O romance “O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati, configura-se como uma verdadeira aula para os estudiosos da literatura. Ao longo de suas páginas, a obra oferece uma análise rica e complexa da condição humana, especialmente no que tange à eterna espera por um momento de glória que, ao que tudo indica, jamais se concretizará. Buzzati, que também era pintor, revela um domínio plástico da narrativa, construindo imagens deslumbrantes que prendem o leitor em um mundo simultaneamente familiar e fantasmagórico. Este romance, por sua estrutura e temas, parece antecipar as angústias do século 21, embora pertença ao século 20. A espera por um sentido ou propósito, tão central ao protagonista, Giovanni Drogo, é o reflexo de um anseio contemporâneo, em que a busca pelo “grande acontecimento” conduz inexoravelmente ao vazio existencial.

Para compreender “O Deserto dos Tártaros”, é interessante compará-lo ao filme homônimo, dirigido por Valerio Zurlini em 1976. Embora ambos compartilhem a mesma estrutura narrativa e o tema da espera, cada um oferece belezas distintas. O filme captura a solidão e a desolação do Forte Bastiani, cenário principal do romance, por meio de imagens que ressaltam a vastidão e o isolamento do deserto. Contudo, é no livro que a verdadeira essência da espera e da passagem do tempo se materializa. Na literatura, a subjetividade de Drogo encontra espaço para se expandir e se aprofundar, revelando um sofrimento silencioso que o cinema, com sua linguagem visual, só pode sugerir. Assim, ler o livro é uma experiência que se distancia significativamente de assistir ao filme, pois na leitura sentimos a presença desse vazio metafísico de forma mais íntima e desoladora.

Dino Buzzati
O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati (Nova Fronteira, 176 páginas, tradução de Aurora Bernardini)

O tema central do romance é a espera. Drogo, jovem tenente, chega ao Forte Bastiani com a esperança de participar de uma grande batalha, de viver uma aventura heroica que eternize seu nome. No entanto, o tempo passa, e Drogo é confrontado com uma realidade muito diferente da que imaginara: o forte é uma fortaleza inativa, onde nada acontece. A espera se torna sua única companheira, transformando-se em uma espécie de ritual sagrado e inescapável. Essa espera, para Drogo, representa o próprio sentido da vida, uma expectativa constante de um evento que justifique sua existência. No entanto, tal momento de glória nunca chega, e o que resta é apenas o vazio, a sensação de desperdício e a frustração de uma vida inteira dedicada a algo inalcançável.

A relação entre o tempo e a espera é tensionada de forma magistral em “O Deserto dos Tártaros”. O tempo, que inicialmente parece fluido e promissor, assume uma forma opressiva à medida que Drogo envelhece. A juventude e a vitalidade dão lugar à apatia e à resignação, enquanto o protagonista aguarda o que, no fundo, sabe que nunca virá. A espera o devora, moldando sua vida e seus sentimentos. Antonio Candido, em seu livro “O Discurso e a Cidade”, aborda a questão do tempo e da espera em obras literárias, no ensaio “Quatro esperas”, no qual analisa quatro romances sobre a espera, entre eles “O Deserto dos Tártaros”, mencionando-o como um exemplo primordial. Candido ressalta como a paisagem desolada do forte e a vastidão do deserto que o cerca reforçam a ideia da espera como um vazio temporal, onde o tempo parece estagnar, privando Drogo de qualquer possibilidade de transformação.

A linguagem e o estilo de Buzzati são elementos centrais para a compreensão de “O Deserto dos Tártaros”. A plasticidade de seu estilo, somada ao prazer pelas descrições e pela criação de atmosferas densas, imprime à obra uma beleza melancólica. Buzzati traduz em palavras as imagens que provavelmente visualizava, preenchendo as descrições com uma intensidade pictórica rara. A beleza das paisagens descritas é uma tentativa de tornar palpável a solidão e o desespero do protagonista, criando uma estética de vazio e ausência. O cuidado com cada imagem e frase revela um amor quase obsessivo pela arte da descrição, elevando a narrativa a um nível de perfeição formal que reverbera a própria temática do livro: a busca de um propósito, de uma forma, mesmo que inalcançável.

Essa busca por um propósito é o que sustenta Drogo. A espera torna-se sua única razão de ser, seu único anseio. Ele sente que deve esperar, que algo grandioso e definitivo acontecerá. A possibilidade de uma invasão, de uma batalha, é o que lhe dá sentido, ainda que tal expectativa nunca se concretize. No entanto, Drogo precisa de um propósito, ainda que ilusório, pois sem ele, sua vida não teria sentido. É essa procura pelo sentido que faz do romance de Buzzati uma obra universal, pois fala de uma condição que todos, em algum momento, enfrentamos: a necessidade de atribuir significado à própria existência, mesmo que seja um significado vazio e ilusório.

O inevitável e a fatalidade permeiam “O Deserto dos Tártaros”. Desde o início, o destino de Drogo parece selado, como se a própria espera fosse uma prisão invisível da qual ele jamais poderia escapar. O tempo não apenas passa; ele se acumula, como uma sombra que cresce a cada dia, até que Drogo se vê totalmente consumido por ele. O romance é uma meditação sobre a inevitabilidade da morte e sobre como, muitas vezes, passamos a vida esperando por algo que nos transcenda, apenas para descobrir, no final, que fomos tragados pela inércia do tempo e pelo peso do que nunca aconteceu.

Quando Drogo retorna ao forte após uma breve tentativa de fuga, ele percebe que nada mais é o mesmo, nem o forte, nem ele próprio. A espera se torna sua identidade, sua única razão de viver. Ao abandonar o forte, ele experimenta uma sensação de vazio ainda maior, como se estivesse traindo a única missão que lhe fora destinada. Candido observa, no mesmo ensaio, que a rotina é um modo de vida e que, para algumas pessoas, representa o único sentido da existência. Para Drogo, o forte se torna um lar, não pelo que oferece, mas pelo que promete e jamais cumpre.

No fim, o tão esperado momento de glória de Drogo, a invasão do forte pelos tártaros, ocorre quando ele já não possui mais saúde ou forças para participar. Ele é acometido por uma doença que o incapacita, impedindo-o de viver o que sempre esperou. O momento passa, ele é apenas um espectador de sua própria derrota. Já não há tempo, e essa percepção da finitude gera uma reflexão amarga sobre as ilusões que alimentamos ao longo da vida, como se o tempo estivesse sempre a nosso favor, apenas para descobrirmos, tarde demais, que ele é implacável.

A rotina é, para Buzzati, uma forma de moldar o tempo e a vida. A repetição diária no forte, os mesmos gestos, as mesmas paisagens, tudo contribui para a ilusão de permanência, para o engano de que o tempo está suspenso. Antonio Candido, ao analisar a rotina, cita Montaigne, que afirma: “A grandeza na morte é o maior dos atos que se tem na vida”. Essa citação ecoa o final de Drogo, que, diante da proximidade da morte, experimenta uma epifania, uma reconciliação com a vida e com a espera que o consumiu por tanto tempo.

A comparação entre “O Deserto dos Tártaros” e “A Morte de Ivan Ilitch”, de Lev Tolstói, revela uma simetria impressionante entre o final de ambos os protagonistas. Assim como Drogo, Ivan Ilitch passa a vida preso a um sentido superficial, ancorado em expectativas e convenções sociais que, na realidade, são apenas distrações. Ao final, quando a morte se aproxima, ambos têm uma epifania, um reconhecimento de suas próprias vidas e da vacuidade de suas esperanças. Em Tolstói, Ivan Ilitch compreende que sua existência fora pautada por uma busca errônea e egoísta de conforto e status, e tal como Drogo, é na morte que ele experimenta uma súbita, ainda que tardia, reconciliação com a vida. Ambos descobrem, no instante final, um sentido para além das ilusões que os governaram, quase como se, apenas na proximidade da morte, a vida lhes revelasse um vislumbre da verdade.

Ao observar a vida de Drogo no forte, um ponto central é a maneira como a rotina molda seu cotidiano e, por fim, define sua existência. A rotina no forte, com seus rituais diários e repetições constantes, não é apenas um modo de passar o tempo; ela é a própria substância do tempo, uma estrutura que oferece uma sensação ilusória de estabilidade e permanência. Buzzati utiliza a rotina para ilustrar a prisão psicológica e espiritual em que Drogo se encontra, uma rotina que, ao mesmo tempo em que esgota o tempo, acaba por fazer parte da própria vida. Antonio Candido argumenta que a rotina é um ritual que domestica o tempo e organiza a nossa vida, e é exatamente essa “domesticação” do tempo que imobiliza Drogo, inserindo-o em um ciclo de passividade e resignação que o impede de escapar.

A partir dessa análise da rotina, percebe-se que o forte se torna, para Drogo, mais do que um local físico: é uma construção simbólica da mente humana, onde o tempo e a espera se entrelaçam até a dissolução da identidade individual. O tempo, com sua cadência silenciosa, apaga qualquer traço de liberdade que Drogo poderia ter; ele se transforma, pouco a pouco, em parte do próprio forte, incapaz de distinguir-se das paredes, dos corredores, da paisagem desolada ao redor. A rotina o transforma em algo quase inanimado, um mero elemento de uma arquitetura que se alimenta da espera. O romance é, nesse sentido, uma exploração profunda do impacto da rotina sobre a identidade e sobre a capacidade de autodeterminação, revelando a tragédia de uma vida limitada à espera.

A linguagem de Buzzati, com sua precisão quase pictórica, contribui para intensificar a atmosfera de opressão e isolamento que permeia o forte. Cada descrição, cada detalhe, é carregado de uma poesia sombria que parece refletir a paisagem interna de Drogo, em consonância com o deserto ao redor. Buzzati não se limita a descrever o mundo exterior, mas revela o deserto interno do protagonista, um vazio que é tanto psicológico quanto existencial. Sua prosa sugere um realismo mágico ao descrever a imensidão desolada do deserto, onde o horizonte é sempre distante e inalcançável, quase como se refletisse o desejo frustrado de Drogo. Este estilo contribui para tornar “O Deserto dos Tártaros” uma experiência quase sensorial, onde o leitor é imerso não apenas na narrativa, mas na atmosfera imutável do forte.

Drogo se encontra à mercê de um propósito ilusório que ele mesmo construiu, uma ilusão de glória que, à medida que envelhece, se desfaz até o ponto da resignação completa. A glória esperada jamais chega, e o que resta é uma existência devorada pelo tempo e pela rotina. Buzzati parece sugerir que a busca por um sentido transcendental, quando desvinculada da realidade, pode nos levar à alienação e à perda de contato com a vida concreta. A espera se torna, para Drogo, um hábito do qual ele não consegue se libertar, mesmo quando percebe a futilidade de sua missão. Esse retrato de uma vida desperdiçada ressoa com o pensamento existencialista, que afirma a importância de uma vida autêntica, voltada para o presente, em oposição à espera passiva por um futuro idealizado.

A epifania final de Drogo, próxima à morte, é um momento de profunda reconciliação. Ele compreende que a espera não era apenas um equívoco; era sua própria vida, a única vida que ele conhecera e à qual ele, de alguma forma, pertence. Em um último lampejo de lucidez, Drogo se resigna à sua condição, aceitando que a grandeza que ele buscara não se manifestará em atos heroicos, mas na serenidade com que ele encara seu destino. Neste romance o herói não alcança a glória que esperava, mas encontra uma espécie de paz na aceitação de sua mortalidade, um gesto que encerra o romance com um tom de resignação quase sagrada.

Buzzati, com sua prosa elegante e sua sensibilidade estética, oferece uma meditação sobre o tempo, a espera e o sentido da existência que transcende seu contexto histórico, dialogando diretamente com questões existenciais que ainda ressoam no século 21. Ao final, o romance deixa ao leitor uma lição poderosa e dolorosa: a de que, muitas vezes, passamos a vida esperando um momento que, quando chega, apenas nos revela a fugacidade de nossa própria existência.

Carlos Augusto Silva

É professor de Literatura e História da Arte. Licenciado em Letras e História, é bacharel em Literatura e Especialista em Estética e História da Arte. Mestre em Estudos Literários, cursa o doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. É autor dos livros “Dicionário Proust”, “Proust e a História” e “Opção Crítica”.