Ando parecido à beça com o meu pai. O apego à solitude. O proveito da solidão. O consumo do tempo livre com lides domésticos pouco relevantes. Tirar uma goteira. Trocar o disjuntor. Juntar num depósito tranqueiras que jamais serão reutilizadas. Queimar uma caixa de marimbondos. Pajear a chuva. Papai viveu sete vidas. “Era pra ter morrido antes, mas, eu não morri”, explicava com ar grave, olhos lustrosos, os óculos na ponta do nariz adunco e um livro espírita adquirido no sebo. Presenteou-me com uma pilha de livros espiritualistas que eu ainda não li. Provavelmente não os lerei. O velho se chateava com a minha indisposição. Essas coisas de alma, de carma, de limbo e outros temas esotéricos que realmente não me interessavam. Não se tratava de desdém com a causa. Apenas não tinha desenvolvido a capacidade intrínseca de crer no intangível, apesar da doutrina espírita guardar uma certa lógica nos seus paradigmas mais elementares. Parecia razoável pagar os pecados nalgum momento da vida, ainda que fosse em vivências futuras, conforme criam os espíritas. Para os relapsos, esse preceito acabava se tornando uma boa desculpa para não se ajustar. “Na próxima reencarnação, eu resolvo.” Eu supunha que os dilemas existencialistas não tivessem uma solução tão simplória no âmbito da eternidade. Ando parecido com o meu pai. No quesito fé, contudo, continuamos divergentes. No mais, também criei hábitos patéticos, como carregar balinhas no console do carro para consumo próprio e para presentear estranhos por onde quer que eu vá. O frentista. O flanelinha. O amarelinho que se aproxima com um bloco de multas nas mãos. Adoçar o dia de alguém faz parte do conjunto de esforços pessoais para tornar a vida um pouco mais palatável. Ando prolixo e repetitivo também. Nos textos que escrevo. Nas resenhas em família. Nas piadas com final já conhecido. Nas desculpas de sempre para procrastinar. Eu me amarro numa postergação. Se for adiar a solução de algum problema, por favor, me chame e vamos então tomar um café. Passei a beber uma taça de vinho tinto todos os dias antes das refeições. O resveratrol previne o entupimento das artérias. Benefícios medicinais à parte, eu gosto mesmo é da tontura. E de me exercitar diariamente. Só não faço ginástica nu, exposto ao relento, conforme ele fazia. Papai morava numa chácara nos arredores da cidade. Certo dia um marimbondo pousou na ponta da pica. Teve que raciocinar rápido o ginasta em pelo. O impulso imediato foi esmagar o invasor com um dos halteres com os quais se exercitava. Enquanto o suor escorria pelo rosto, o cérebro maquinava e o inseto sapateava desinibido pela superfície lisa da glande, inzonando. Será que pensava em quê o marimbondo? Meu velho só pensava em se safar da picada. Fechou os olhos. Conclamou em silêncio o adjutório dos pretos velhos. Reivindicou apoio espiritual de emergência para escapar do ataque iminente e, enfim, o bicho levantou voo e sumiu no pomar florido. O fato, a despeito de real, pode parecer hilário. Ao menos, para quem nunca teve um marimbondo pousado na própria genitália. Também, quem mandou meter fogo numa caixa de marimbondos? Pareço-me com ele um pouco mais a cada dia. No jeito de andar. No jeito de errar. No jeito de amar.
Comendo pelas beiradas a melancolia
Eberth Vêncio
Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.