Todas as enfermeiras vão para o céu; já os médicos, só a metade

Todas as enfermeiras vão para o céu; já os médicos, só a metade

Eu não podia acreditar que o Jantinha tinha morrido numa troca de tiros com a polícia. O telejornal noticiou que os militares encontraram um arsenal no porta-malas do seu carro. Não dava para confiar de olhos fechados na versão da polícia, sabem como é, mas, no caso do Jantinha, provavelmente, ele tinha alguma culpa no cartório, sim, senhor. Não se endireitava o danado. Trágico fim para um sujeito com uma vida desregrada e tortuosa desde sempre.

Conheci o Jantinha na faculdade de medicina em meados dos anos 1980. Não dava para acreditar como um cara com o seu perfil psicológico fora aprovado num concorrido vestibular para uma tradicional instituição federal de ensino superior. Corria à boca miúda pelos corredores do campus que ele fazia parte do famigerado grupo estudantes que entraram pelas portas dos fundos, de forma fraudulenta, ao comprarem as próprias vagas de uma quadrilha constituída por “pilotos” — concurseiros de mente brilhante — os quais faziam as provas se passando pelos verdadeiros candidatos, valendo-se de artimanhas escusas e do uso de documentos falsificados. Naquela época não existiam os recursos eletrônicos atuais que permitem maior segurança para coibir a ação dos estelionatários. Todo mundo desconfiava, só que, ninguém tinha uma prova. Portanto, não se podia achegar ao indivíduo e, simplesmente, indagar sobre um assunto tão grave. Não dava para prever a reação de pessoas como o Jantinha. Um calouro garantia ter visto o dito-cujo na cantina, certa manhã, com uma pistola debaixo do jaleco, enfiada na cintura, na altura da pança.

A primeira vez que me deparei com o Jantinha durante a graduação foi por volta do terceiro ano do curso médico, quando ele chegou pilotando uma moto CBX 750 F novíssima com uma morena estupenda novíssima sentada na garupa, abarcada na cintura dele, vestindo uma minissaia jeans desbotada que mal escondia o magnífico par de coxas torneadas pelo Criador em pessoa, recoberta por uma pelagem loira, loirinha, loiríssima, descolorida com o artifício de água oxigenada volume 10. Jantinha apresentou a mocinha como sendo a sua noiva e, durante semanas, exibiu com orgulho o book da beldade repleto de fotos sensuais que pareciam extraídas de um catálogo de garotas de programa. Naquele tempo ainda não tinham inventado a self e a internet para incrementar a sífilis nas redes sociais.

Jantinha era um aluno fanfarrão metido a piadista, porém, ninguém lhe dava trela com medo estreitar relacionamento com um sujeito excêntrico de índole suspeita. Era uma figura caricata, um dos estudantes mais velhos da faculdade de medicina. Baixinho. Barrigudo. Parcialmente calvo. E coxo de uma perna. Dentre várias lorotas, ele contava ter nascido de um parto normal anormal, longo e complicado, assistido por uma parteira ébria e inexperiente que, lamentavelmente, esmagara um dos seus testículos durante as desesperadas manobras para extraí-lo da arrochada genitália materna. Nascera sentado. A gônada ferida acabou atrofiando com o tempo, fato esse que o tornou um roncolho. Quanto à perna troncha, disse que tinha tomado mordida de um jacaré durante um acampamento às margens do Rio Araguaia. Claro que ninguém acreditava naquela história estapafúrdia. O mais provável era que fosse ferimento de bala mesmo.  

Não sei como determinados escândalos vinham à tona, mas, nenhum cristão se prestava a denunciar o Jantinha. Claro que era uma espécie de conivência. Sabia-se que ele, mesmo antes de se formar — se é que, de fato, ele colou grau — já atuava como médico numa clínica clandestina na periferia da cidade, onde, dentre tantas picaretagens, praticava abortos que custavam os olhos da cara. Tinha o hábito de se mudar frequentemente de endereço para não fazer ponto e para não chamar a atenção das autoridades sanitárias. Na única vez em que foi preso com vida, quando teve a foto exibida nos principais telejornais, já tínhamos concluído há tempos a graduação e ninguém sabia dizer se o Jantinha terminara o curso ou se o curso tinha terminado com ele. A possibilidade de que tivesse sido jubilado pela universidade era grande. A desconfiança era de que ele trabalhasse como charlatão em cidadezinhas remotas no interior do estado, onde ficava mais difícil ser alcançado pelos testículos dos órgãos reprodutivos, ou melhor, pelos tentáculos dos órgãos regulatórios.

A desagradável lembrança do Jantinha sucedeu recentemente, enquanto eu assistia à palestra do ilustre e honorável doutor Celmo Celeno Porto, no Conselho Regional de Medicina. Ele foi um de meus mestres na graduação. No alto dos 90 anos de idade, discursava para um auditório lotado durante um evento de entrega de comendas para profissionais com relevantes serviços prestados à sociedade e à medicina. Doutor Celmo continuava elegante, magnético, lúcido, confiável, inteligente e, acima de tudo, um orador de primeira grandeza. Durante a comovente palestra, ele agradeceu pela oportunidade de representar os demais colegas homenageados e por rever na plateia inúmeros ex-pupilos da faculdade de medicina. Apesar da senectude avançada, antenado às mudanças e às tendências do mundo contemporâneo, o veterano professor alertava os seus pares para a necessidade premente da humanização no atendimento médico aos cidadãos, para a ruptura de antigos paradigmas, para o aperfeiçoamento científico contínuo e para a adesão à prática médica de ponta, utilizando, por exemplo, os recentíssimos recursos da Inteligência Artificial.

Saí de lá mais esperançoso do que quando entrei, mas, não permaneci para o coquetel. A fome que eu tinha era outra. Na verdade, andava avesso às aglomerações. Voltei para casa dirigindo o meu velho carro, ouvindo música e refletindo a respeito do desmesurado antagonismo entre as histórias de vida daqueles dois indivíduos tão marcantes, cada qual, ao seu estilo. Eram, quem sabe, exímios exemplares do bem e do mal de que é capaz um ser humano. Apesar de todas as dificuldades, eu tinha convicção de que a maioria dos meus colegas era vocacionada para a profissão, possuía ótima formação técnico-científica e tinha a ética hipocrática como um dos mais rígidos pilares a sustentar o labor de um indivíduo que se propunha a cuidar da saúde de seus coirmãos.

É claro que a frase-título desta crônica é uma provocação, é pura força de expressão, uma artimanha marota para fisgar leitores. Portanto, antes que eu seja cancelado, vou parodiar o divertido aforismo cunhado da lavra de outro mestre na medicina, o falecido doutor Múcio Borges, que atendeu pacientes até os seus 85 anos de idade: sem sombra de dúvidas, todas as enfermeiras vão para o céu; os médicos, muito mais do que 50% deles. A maior parte deles, com certeza. A minoria irrisória dessa jocosa estatística será sempre ocupada por homens descomprometidos com a razoabilidade e com a ética, cidadãos antissociais e danosos como o Jantinha, que acabou jantado pelo mal que ele mesmo alimentou.  

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.