“Jogo Perigoso”, adaptado da obra homônima de Stephen King, ganha uma interpretação intensa nas mãos de Mike Flanagan, que transforma um enredo aparentemente simples em uma exploração psicológica complexa e angustiante. No centro da trama, um casal tenta resgatar o que resta de seu relacionamento desgastado. Para muitos, essas escapadas podem parecer uma tentativa banal de reviver os dias de paixão, mas o filme rapidamente revela que as camadas superficiais escondem questões muito mais profundas e inquietantes. O que poderia ser apenas mais uma história de reconciliação conjugal se transforma em uma descida brutal para o território do medo, culpa e sobrevivência.
No filme, Carla Gugino dá vida a Jessie, uma mulher presa não só fisicamente, mas psicologicamente, em uma armadilha construída ao longo de anos de relacionamentos falhos e traumas enterrados. O início do longa, que parece focar nas trivialidades de uma viagem de fim de semana, logo se desdobra em uma narrativa densa e claustrofóbica. Flanagan utiliza com maestria o espaço limitado de uma casa isolada para amplificar o desconforto e a tensão, enquanto Jessie e Gerald, seu marido interpretado por Bruce Greenwood, buscam reavivar uma paixão que já dá sinais de erosão. O que parecia ser um final de semana casual torna-se o palco para o colapso total de suas vidas.
Enquanto King, em seu romance, utiliza o fluxo de consciência de Jessie para mergulhar o leitor em sua mente fragmentada, Flanagan faz o mesmo por meio de diálogos internos e visões perturbadoras. À medida que Jessie se vê acorrentada à cama após a morte súbita de Gerald, a trama assume um ritmo alucinante. O silêncio da casa é quebrado apenas pelas vozes em sua mente, lembranças há muito suprimidas e o assustador retorno de um cão selvagem, que, faminto, ronda a casa em busca de algo mais do que alimento. Este cão, símbolo do desespero e da vulnerabilidade de Jessie, é apenas uma das muitas metáforas visuais que Flanagan insere para ampliar a atmosfera opressiva que permeia o filme.
A narrativa evolui em um crescendo de tensão, enquanto Jessie confronta não apenas a realidade de sua situação física, mas também os demônios de seu passado. O abuso sofrido na infância, antes meramente insinuado, agora emerge com brutalidade e clareza, desvelando os motivos por trás de sua submissão ao longo dos anos. O espectador, assim como Jessie, é forçado a confrontar verdades desconfortáveis sobre o ciclo de poder, controle e violência que muitas vezes define relações amorosas.
A decisão de Flanagan de manter o foco quase exclusivamente na perspectiva de Jessie é o que confere ao filme sua força emocional. A câmera de Michael Fimognari trabalha em conjunto com a narrativa, utilizando closes sufocantes e ângulos distorcidos para imergir o espectador na psique quebrada de Jessie. A fotografia opressiva, com uso frequente de tons quentes e escuros, cria uma sensação de constante tensão e iminente perigo. Cada frame parece ecoar a sensação de aprisionamento e isolamento da protagonista, tornando a experiência do espectador visceral e emocionalmente desgastante.
Flanagan também elimina qualquer resquício de romantização dos eventos, optando por uma abordagem direta e implacável da violência emocional e física retratada no filme. O ritmo da narrativa é cuidadosamente calculado, com uma alternância eficaz entre momentos de introspecção silenciosa e explosões de horror psicológico. A decisão de introduzir elementos visuais e sonoros que remetem ao passado traumático de Jessie amplifica a sensação de que, apesar de estar fisicamente presa, é sua mente que realmente precisa de libertação.
O desfecho, que poderia facilmente cair no melodrama ou no sensacionalismo, é tratado com uma sobriedade surpreendente. Jessie não emerge como uma heroína vitoriosa em sentido tradicional, mas sim como uma mulher marcada por cicatrizes físicas e emocionais. O julgamento final não se concentra em punir os responsáveis por seu sofrimento, mas em mostrar o longo e árduo caminho que ela ainda terá que trilhar para reconstruir sua vida. Flanagan, assim, oferece uma conclusão agridoce que se recusa a oferecer respostas fáceis ou resoluções confortantes.
Com “Jogo Perigoso”, Flanagan não apenas adapta um dos romances mais difíceis de Stephen King, mas também faz uma declaração incisiva sobre trauma, sobrevivência e resiliência. Em suas mãos, o material de origem é transformado em uma reflexão poderosa sobre o que significa estar preso — não apenas fisicamente, mas em ciclos de abuso e autossabotagem que muitas vezes demoram anos para serem superados. O resultado é um filme de horror psicológico que se destaca por sua profundidade emocional, algo raro em um gênero frequentemente definido por sustos fáceis e violência gráfica.
Filme: Jogo Perigoso
Direção: Mike Flanagan
Ano: 2017
Gêneros: Terror/Thriller
Nota: 8/10