Em “Anatomia de uma Queda”, um corpo cai, mas o prenúncio da tragédia estava presente muito antes, no declínio irreversível de um casamento. Justine Triet utiliza um clichê inicial para explorar com profundidade as limitações de uma relação, descendo aos seus alicerces e revelando as fissuras que levaram à sua destruição.
O roteiro impecável de Triet e Arthur Harari se apoia na atuação complexa e penetrante de Sandra Hüller, possível candidata ao Oscar de Melhor Atriz. O filme também disputa os prêmios de Melhor Filme, Direção, Roteiro Original e Montagem, esta última sob a responsabilidade de Laurent Sénéchal. A performance de Hüller gradualmente cede espaço para outros dois protagonistas, que, embora menos intensos, também brilham.
Imprevisível e filosófico, como é típico do cinema francês, “Anatomia de uma Queda” merece a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Sua análise fria e calculista sobre o fracasso de certos vínculos é aquecida no momento certo, revelando as pistas sutis que precedem o colapso final.
A escritora Sandra Voyter está sendo entrevistada em seu chalé nos Alpes franceses, enquanto seu marido Samuel, um professor com aspirações literárias, toca uma versão instrumental da música “P.I.M.P.” de 50 Cent no sótão.
Samuel, que parece viver à sombra da esposa, explora não apenas seu corpo, mas principalmente seu espírito, como será revelado a seguir. A edição ágil de Sénéchal permite ao público acompanhar as reações de Sandra e Zoé Solidor, uma estudante de mestrado que faz perguntas aparentemente insignificantes, até que Sandra começa a reverter a situação.
Escrever é uma atividade solitária e muitas vezes ingrata. Agora que Sandra tem a chance de interagir com alguém de fora, não perderá a oportunidade de sair de sua bolha. Triet insinua um possível flerte entre Sandra e Zoé, com Camille Rutherford complementando Hüller em uma dinâmica que desperta o interesse da audiência. No entanto, uma tragédia iminente paira sobre a narrativa.
A música de Samuel se torna tão alta que Sandra decide encerrar a conversa com Zoé. A câmera então mostra Daniel, o filho do casal, saindo para caminhar com o cachorro da família, um border collie chamado Snoop, antecipando uma discussão entre seus pais. No terceiro ato, vemos Sandra confrontando Samuel no sótão, interpretado por Samuel Theis.
A diretora e seu co-roteirista ampliam o mistério ao nomear os personagens com os nomes reais dos atores. Quando Daniel, interpretado por Milo Machado Graner, retorna para casa, encontra o pai caído na neve, envolto em uma poça de sangue.
“Anatomia de uma Queda” explora durante mais de duas horas as circunstâncias enigmáticas da morte de Samuel. Diversas teorias são desenvolvidas, sugerindo acidente, crime ou suicídio. Triet destaca a visão particular dos franceses sobre o suicídio em uma das intensas audiências judiciais que antecedem o veredito.
No tribunal, uma gravação de áudio revela o início de uma briga, evidenciando ainda mais a distância entre Sandra e Samuel, e permitindo que Theis exiba a complexidade de seu papel. Explica-se que Samuel costumava registrar as discussões do casal com a concordância de Sandra, algo que ela havia esquecido. A acusação de bissexualidade de Sandra, sugerindo um possível envolvimento com Zoé, também pesa contra ela.
Teorias conspiratórias e julgamentos precipitados permeiam o tribunal e a percepção do público sobre Sandra, interpretada com maestria por Hüller. A sequência final, com Sandra e Snoop exaustos perto da janela, deixa uma única certeza: ninguém conhece verdadeiramente o outro, e talvez, ninguém realmente goste do outro — exceto os cães, que nos aceitam como somos.
Filme: Anatomia de uma Queda
Direção: Justine Triet
Ano: 2023
Gêneros: Suspense/Crime/Drama
Nota: 10