Era uma vez um menino que queria ser mulher. Bem, na verdade, ele queria ser um gênero muito específico de mulher e só enquanto durasse o brilho dos holofotes e o espoçar dos aplausos, e, embora nem ele soubesse disso, essa era a identidade com que se firmaria para o mundo. No tocante “Chabuca”, Jorge Carmona Del Solar pincela de um humor ora sutil, ora escrachado as desventuras do peruano Ernesto Pimentel, um dos maiores artistas da televisão de seu país, nos seus muitos descaminhos até o estrelato, momentos em que foi adquirindo consciência de sua real natureza para além dos palcos, batendo a cabeça de leve e com força, tateando um ambiente a cuja hostilidade foi obrigado a se misturar, sem uma ideia clara do que viria depois.
O roteiro, do próprio Pimentel, coassinado por Italo Cordano e Mariana Silva, não é exatamente imparcial, por óbvio, nem mesmo simétrico, edulcorando as tantas horas de apuros e conferindo um realce excessivo às conquistas do personagem central. De qualquer forma, é sempre louvável a coragem de quem abre sua vida (ou uma parte dela) à multidão de desconhecidos que, como sempre, está pronta para julgamentos de toda sorte.
O filme é quase todo um passeio pela infância e juventude de Pimentel, a partir de um gancho inusitado. A postos para entrar em cena na pele de Chabuca, a drag queen espalhafatosa que canta, dança, recebe convidados e diz umas verdades fesceninas e urgentes de quando em quando, o artista sofre um mal-estar e desmaia. Num delírio que se vai mostrando estranhamente palpável, ele volta a 1978, aos oito anos, o primeiro vislumbre de que não se encaixava em nenhum dos moldes que lhe apresentavam. Arequipa, na região meridional do Peru, era ainda menor, o garoto Ernesto, um estudante aplicado e sereno, tirava boas notas, tinha amigos, mas passava fome com a mãe, Nelly, que defendia uns trocados como cantora num inferninho da vizinhança, sua grande inspiração.
Nesse primeiro segmento, o diretor aposta todas as fichas nessa relação de um amor incondicional, escondendo nas entrelinhas a sugestão acertada de que Nelly poderia ter sido mais enérgico com o garoto. A afinidade entre Norka Ramírez e Izán Alcazar define o ritmo da narrativa até o desfecho, mas antes Sergio Armasgo atesta um domínio espantoso sobre o protagonista na fase adulta, momento em que Pimentel mata seus leões até se tornar quem é.
A aids invade a rotina do aspirante a ator e dançarino pouco depois do namoro com André — mas pode ter sido ainda na adolescência, quando dava vazão aos ímpetos sexuais com homens mais velhos em saunas. Em 1990, a pandemia de um vírus mortal que estigmatizava suas vítimas era fonte de um preconceito que Chabuca, nome escolhido por Pimentel em homenagem a Chabuca Granda (1920-1983), cantora e compositora famosa por sucessos como “La Flor de la Canela” (1953) e “Fina Estampa” (1956), enfrentou com graça e destemor.
A perda de André, vitimado por um câncer, vem a lume numa tela negra no epílogo, e no transcurso dos 113 minutos Miguel Dávalos serve de um perturbador contraponto ao que Armasgo oferece com Chabuca, a encarnação mesma da alegria de viver. Principalmente nas vezes em que isso é só a maquiagem que esconde a tristeza mais profunda.
Filme: Chabuca
Direção: Jorge Carmona Del Solar
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Comédia/Biografia
Nota: 8/10