Considerado o filme favorito de Daniel Day-Lewis, romance ganhador de 3 Oscars está na Netflix Divulgação / Focus Features

Considerado o filme favorito de Daniel Day-Lewis, romance ganhador de 3 Oscars está na Netflix

Houve um tempo em que o amor não ousava dizer seu nome. Nesse passado nem tão remoto, homens amavam mulheres, negros casavam-se com negras, muçulmanos pensavam nas ocidentais como devassas que os arrastariam para o mais fundo do inferno e o mundo se encerrava num imenso campo minado, onde todo passo obedecia à lógica fria de jamais sobrepujar as convenções, mesmo que isso significasse ter de, dia após dia, bater de frente com sua própria natureza e admitir uma serena infelicidade, muito bem-ajustada aos olhos alheios.

“O Segredo de Brokeback Mountain” nunca foi a história de dois marmanjos que se encontram a dada altura da vida e tentam ficar juntos, mas um filme que se espraia pela solidão. É difícil imaginar outro diretor plural e destemido o bastante que Ang Lee para capitanear a empreitada. Meio por acaso, o taiwanês acerta em cheio e expõe uma das chagas do jeito americano de viver, sem prejuízo, claro, do registro da dor tão íntima dos personagens centrais.

O roteiro de Larry McMurtry e Diana Ossana adapta o conto de Annie Proulx, publicado na revista “The New Yorker” em 1997, de modo a não deixar que se perca a essência maldita desse estranho casal, cujo romance perdura graças a encontros fortuitos se estendem por mais de duas décadas, transformações que o espectador acompanha como se aos poucos também virasse uma testemunha dos bons e dos maus momentos dos dois.

O domínio do texto de Proulx rendeu a McMurtry e Ossana o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, bem como Lee também faturou sua primeira estatueta, de Melhor Direção, e, por um triz, o longa, favorito ao prêmio de Melhor Filme, não bate ”Crash: No Limite“ (2005), de Paul Haggis, do qual ninguém mais se lembra. A música, a cargo de Gustavo Santaolalla, vencedor na categoria Melhor Trilha Sonora Original, só reforça a ideia de que ”O Segredo de Brokeback Mountain“ é um trabalho de muitas mãos, uma orquestra afinada sob a batuta de um maestro seguro.

Ennis Del Mare Jack Twist se conhecem no Wyoming em 1963. Os dois têm cerca de vinte anos e vão atrás de uma colocação como pastores de ovelhas durante o inverno no oeste na encosta da tal Montanha dos Sortilégios, talvez a própria Montanha Mágica de Thomas Mann (1875-1955), oficialmente chamada de Big Horn.

De imediato, percebe-se o desconforto intrínseco de Ennis, sua composição de um garoto assustadiço, esgueirando-se pelas paredes do trailer Joe Aguirre, o capataz vivido por Randy Quaid, que aquiesce em despachá-lo com o outro para a Brokeback, pagando uma ninharia. Nota-se também que Jack esconde mágoas de outros tempos, mas as processa de modo a obrigar as pessoas a se concentrarem em sua face mais luminosa, justamente o que faz com que Ennis se encante por ele.

Não por acaso é Jack quem manifesta interesse pelo companheiro de lida, e a cena de sexo repentino e violento entre os eles, como se Ennis o castigasse, é o preâmbulo de uma relação como outra qualquer, com altos e baixos, gritos e reconciliações, até que chega a hora de descer para a planície. Num lance um tanto artificioso, Aguirre fica sabendo do que seus subordinados faziam para matar o tempo, e os dois passam anos sem se ver.

Heath Ledger (1979-2008) e Jake Gyllenhaal sintetizam o embaraço desse amor sufocado pelas circunstâncias e pelo zeitgeist numa cena em que, casados e pais de família, os dois tornam a se ver, na casa onde Ennis mora com a esposa, Alma, e as duas filhas. O que se segue choca, com alguma razão, suscetibilidades mais delicadas; contudo a direção a um só tempo firme e poética de Lee não permite que nada resvale para o vulgar, e ainda que Alma — por outra estranhíssima proeza, feito aquela conseguida pelo personagem de Quaid — assista ao vergonhoso espetáculo de lascívia do marido com outro homem, os dois só separam quando as meninas já são adolescentes.

Essa sutileza de Lee em capturar os sentimentos da outra parte enriquece muito seu trabalho. Michelle Williams tem seu quinhão de mérito no sucesso do longa, bem como a Lureen de Anne Hathaway. Na pele da esposa de Jack, cabe a ela desvendar o verdadeiro segredo numa conversa por telefone com o amante do marido, que o diretor ilustra em imagens chocantes, impensáveis até mesmo num faroeste de Don Siegel (1912-1991). Se o amor é de fato uma força da natureza, como dizia o cartaz de divulgação — com Ledger e Williams em primeiro plano —, o ódio continua um usurpador quase imbatível.


Filme: O Segredo de Brokeback Mountain
Direção: Ang Lee
Ano: 2005
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 9/10