Faça um favor a si mesmo e assista, na Netflix, a uma das melhores comédias românticas da história do cinema Barry Wetche / GHS Productions

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Como a substância fundamental de quase todas as relações humanas, o amor se submete a metamorfoses para não desaparecer na bruma corrosiva do tempo. Kay, a esposa abnegada de “Um Divã para Dois”, tem feito das tripas coração quanto a segurar seu casamento com Arnold, embora sinta que o esforço unilateral não vá dar cabo de anos de uma monotonia que resvala na indiferença e na humilhação. É aí que David Frankel começa a virar a chave para a solução que ocupa grande parte dos cem minutos de seu filme, levando Kay e Arnold a um universo que passariam a vida sem jamais conhecer, lugar arejado o bastante para permitir que o ar circule e o sentimento renasça.

Frankel tem na manga alguns truques para fazer a audiência levar a sério o casal formado por Meryl Streep e Tommy Lee Jones, dois excelentes atores à primeira vista sem muita afinidade entre si. O maior deles é neutralizar o brilho que poderiam emanar de uma vez em cenas que só funcionam se tomadas em conjunto e toda a serenidade, para depois que o conflito principal se desenrola, deixá-los à vontade para sugerir os predicados os que teriam convencido a ficar juntos por 32 anos, não obstante nunca terem frequentado a mesma enfermaria. 

“Um Divã para Dois” não é nenhuma maravilha, e parece saber disso. No primeiro contato que o público tem com a história, a roteirista Vanessa Taylor põe Kay diante do espelho numa bela camisola azul, arrumando-se para cruzar o corredor e bater à porta do aposento onde está o marido, que lê compenetradamente. Conforme Taylor explica bem depois, Arnold passou a dormir no lugar reservado aos hóspedes quando sofrera uma lesão na coluna pintando a parede do quarto de Brad, o filho deles, de Ben Rappaport, mais de duas décadas antes, e nunca mais voltou — até porque, a coluna sarara, mas vieram a dispepsia, a apneia, os roncos, os cacoetes. Pensar em Streep num papel como este, o de uma mulher madura às voltas com problemas conjugais, não é um sacrifício — a exemplo do que se assiste em “Amor à Primeira Vista” (1984), dirigido por Ulu Grosbard (1929-2012); “As Pontes de Madison” (1995), levado à tela por Clint Eastwood; “Simplesmente Complicado” (2009), de Nancy Meyers; ou mesmo o despretensiosamente saboroso “Ela É o Diabo” (1989), o besteirol emplacado por Susan Seidelman, ou “O Diabo Veste Prada” (2006), a cargo do próprio Frankel, cada qual ressaltando um prisma muito específico da questão.

A surpresa atende pelo nome de Tommy Lee Jones na pele de um machão empedernido tomado de pudores quanto à companheira, santificada e assexualizada em mais de trinta anos de convivência. É impossível não olhar para Jones e não associar seu tipo durão ao exterminador de alienígenas de franquia “Homens de Preto”; em “Um Divã para Dois”, contudo, o ator sufoca estereótipos com sutileza espantosa ao mesmo tempo que serve-se deles quando julga necessário. É o que se tem no momento em que, impelido pela esposa, aquiesce em gastar quatro mil dólares numa espécie de reabilitação marital, e a trama passa ao andamento tragicômico que justifica boa parte do enredo. 

Em Hope Springs, a cidadezinha do Maine que empresta o nome ao título original do filme, os dois encontram-se com o doutor Feld, o terapeuta de casais vivido por Steve Carell, e “Um Divã para Dois” começa a ficar realmente bom. Assim como Jones, Carell chega a mesmerizar encarnando a sensatez de que nem Kay nem Arnold dispõem, em que pese a dupla de protagonistas seguir no comando. A segurança de Frankel ao fazer seus atores principais viverem situações ora somente patéticas, ora arriscadas, a um passo do vulgar — como quando, numa sala de cinema, Kay decide que é hora de recuperar o tempo perdido e ataca o namorado de juventude que envelheceu com ela de um jeito nada delicado e tampouco efetivo —, dá o tom da narrativa, até o desfecho, com, essa, sim, uma linda sequência a comprovar a reconciliação sincera dos dois. Casamento é loteria, mas uma vez que se aposta, deve-se torcer pelo grande prêmio. 


Filme: Um Divã para Dois 
Direção: David Frankel 
Ano: 2012 
Gêneros: Drama/Romance  
Nota: 8/10