O filme mais agonizante e perturbador do último ano acaba de estrear na Netflix Divulgação / Netflix

O filme mais agonizante e perturbador do último ano acaba de estrear na Netflix

As entidades diabólicas que aterrorizam lugares como Kanchanaburi são muito diferentes das que se materializam as grandes cidades mundo afora. Conta-se que, na década de 1970, essa vila do oeste da Tailândia teve de aprender a lidar com manifestações sobrenaturais incorporadas por uma velha de cabelo longo e em desalinho, rosto picado das bexigas e dentes afiados e escuros, resultado de um malfadado acordo com Satanás, o rei dos demônios, que exigia-lhe estar sempre à cata de novas almas para permitir que ela viva.

Não se sabe em que medida o relato dos moradores de Kanchanaburi ampara-se na verdade, mas o caso é que “Quando a Morte Sussurra” replica à perfeição a atmosfera de pânico a se abater sobre um povo esquecido à própria sorte, contando com menos que o básico, até ser socorrido por um exorcista sem o glamour daquele a que se refere o filme de William Friedkin (1935-2023), porém muito mais expedito. O tailandês Taweewat Wantha tira do roteiro de Sorarat Jirabovornwisut, adaptação de “Tee Yod”, o romance de mistério de Krittanon, um conhecido escritor local, as cenas entre macabras e singelas que ilustram um ambiente que vai renunciando à normalidade conforme a encarnação da morte deixa de emitir cicios maviosos e passa a gritar a plenos pulmões, reivindicando o que julga ser seu numa família pobre, mas unida. 

Quanto mais se vive, mais se cristaliza em nós a ideia de que a vida é um curioso desafio, em que vencida cada etapa, impõe-se nós a seguinte, e mais outra, e outra ainda, até que essas mil situações que mais parecem testes a nossa resistência, se tornem para nós a fonte mesma do que podemos ter de mais genuíno, a capacidade de suportar a incerteza fundamental que cobre tudo, desfaz dos planos mais ordinários com que nos atrevemos a sonhar, atropela com brutal violência o que julgamos precioso e sobrepuja-nos sua natureza sobranceira, de pesada sombra que eclipsa qualquer luz, do funesto que macula de castigo hediondo a salvação possível e aturde-nos mesmo no que temos de mais indevassável, que pensávamos só nosso, nos detalhes de nós mesmos que julgávamos conhecer tão bem, reafirmando estar sempre muito certa do domínio que exerce sobre todas as criaturas.

A busca pelo motivo de tantas obscuras intenções, o porquê de nos lançarmos em abismos tão fundos e tão habitados dos monstros que nós mesmos embalamos — enquanto não seca em nós a crença de que a vida é, antes de qualquer outra coisa, sonho — não deixa de ser um estímulo de força descomunal, que puxa-nos para cima, para onde ainda existe o ar, num movimento paradoxal e capcioso, que só traz consigo a lufada da destruição mais implacável, oculta sob a máscara da utopia que proclama uma época menos aterradora. 

Ainda que Yod, a personagem de Peerakrit Phacharaboonyakiat, seja esteja em evidência em do prólogo à última cena, Nadech Kugimiya é sem dúvida quem justifica o enredo. Yak, o mocinho que toma conta da mãe e dos irmãos mais novos e se envolve em alterações com o pai por achá-lo sempre um tanto preocupado demais com a lavoura, relegando a família a um distante segundo plano, parece o único a se empenhar em debelar a ameaça que se assenhora daquela gente desvalida, sem ter direito a nada e agora às voltas com o mal em sua configuração mais elementar e mais nociva. Wantha ancora o enredo na figura de Yak a fim de sugerir o batido tropo da luta do bem contra o mal, que o carisma de Kugimiya, bem-embalado na fotografia trevosa, encarrega-se de tornar um assunto relevante. De resto, “Quando a Morte Sussurra” atende aos fãs do gênero, também graças à bruma de mistério que a narrativa faz questão de não deixar morrer. 


Filme: Quando a Morte Sussurra 
Direção: Taweewat Wantha 
Ano: 2023 
Gêneros: Terror/Thriller 
Nota: 8/10