Não está na Netflix (mas deveria): Valsa com Bashir Divulgação / Cinéart

Não está na Netflix (mas deveria): Valsa com Bashir

Beirute, 1982. Três dias depois do atentado contra o embaixador de Israel no Reino Unido — articulado pela Fatah-CR, liderada por Abu Nidal, em conjunto com o serviço secreto iraquiano —, o primeiro-ministro israelense, Menachem Begin, ordenou o envio de tropas para o sul do Líbano, devido à presença da Organização para a Libertação da Palestina no país (apesar da OLP ser declaradamente hostil a Abu Nidal). Mal saído da adolescência, Ari Folman estava entre os soldados convocados para o novo conflito.

Ao longo da guerra, ele se vê envolvido em diversos episódios traumáticos, notadamente no Massacre de Sabra e Chatila, evento que chamou a atenção do mundo para a situação catastrófica enfrentada pelos refugiados palestinos.

Décadas após o fim da guerra, Folman se encontra para beber com Boaz, um ex-companheiro de exército que também esteve no Líbano. O amigo lhe revela que tem um pesadelo recorrente, no qual é perseguido por uma matilha de cães furiosos. Explica que isso se deve a sua função desempenhada na guerra, consistente em atirar nos cães durante as operações noturnas (os oficiais sabiam que ele seria incapaz de matar um ser humano). Ao ouvir aquilo, Folman percebeu que ele, ao contrário do amigo, era incapaz de se lembrar de qualquer evento relacionado à guerra. Preocupado, resolve procurar a ajuda de um amigo psicólogo, que lhe dá a sugestão decisiva: buscar pessoas que também estiveram na Guerra do Líbano de 1982. Seria uma forma de recuperar as suas próprias memórias.

Esses eventos reais aparecem nas primeiras cenas de “Valsa com Bashir” (em hebraico: “Vals im Bashir”) e constituem a justificativa do documentário. Ari Folman é, simultaneamente, o diretor, o narrador e o protagonista da obra. É o mergulho autobiográfico de um veterano que não se lembra do que fez e do que não fez, que sente culpa, mas não sabe bem por quê. De produção franco-teuto-israelense, o longa estreou em 2008 no Festival de Cannes e foi feito inteiramente com animações inspiradas em quadrinhos e nas pinturas expressionistas de Otto Dix. Além disso, conta com uma trilha sonora que mistura a música clássica minimalista de Max Richter com o rock dos anos 80.

A escolha pela animação torna os horrores da guerra mais palatáveis ao espectador, ao mesmo tempo que confere uma atmosfera quase onírica às cenas. Esse efeito se harmoniza muito bem com a natureza “plástica” e “vacilante” da memória humana, um dos temas centrais da obra.

O documentário é constituído por uma série de entrevistas que Folman fez com amigos, especialistas e ex-combatentes que estiveram na Guerra do Líbano. Os relatos são todos reencenados, assim como as próprias memórias do diretor, à medida que elas vão reaparecendo.

Não seria exagero dizer que a obra é uma verdadeira aula de psicologia, explorando a fundo um caso típico de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) causado pela guerra. Por diversas vezes ao longo do documentário, somos convidados a acompanhar os pesadelos de Folman, que consistem em evocações de memórias desconexas ou inventadas. Conforme explicado no documentário por uma especialista entrevistada, tais reminiscências do inconsciente constituem uma forma de dissociação produzida pela mente para proteger a si mesma de lembranças desagradáveis.

O documentário também tem o mérito de trazer muitas informações históricas — dentro de uma perspectiva israelense — sobre a Guerra do Líbano de 1982 e, principalmente, sobre o terrível massacre que ocorreu nos campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila. O diretor atormenta-se por não conseguir se lembrar do seu grau de participação nas atrocidades. Assim, em busca de respostas, entrevista ex-combatentes e o correspondente de guerra, Ron Ben-Yishai.

O massacre durou três dias e foi perpetrado pelas falanges cristãs libanesas, como retaliação pela morte do recém-eleito presidente do Líbano, Bashir Gemayel. Israel era aliado das falanges libanesas e, nessa condição, os soldados receberam ordens para iluminar o céu durante a tomada de Sabra e Chatila. A questão que se coloca no documentário é: o exército israelense sabia que estava sendo cometido um massacre?

Os depoimentos colhidos no documentário são contraditórios. Um ex-combatente entrevistado por Folman diz que ninguém fazia ideia do que estava acontecendo lá. O correspondente de guerra, Ron Bem-Yishai, por outro lado, relata que, ainda durante os eventos, começaram a se espalhar pelas tropas rumores de que os falangistas estavam cometendo um massacre. Um militar, inclusive, teria ido avisá-lo. Ele conta que, após receber a denúncia, ligou para contar tudo ao Ministro da Defesa, Ariel Sharon, o qual teria apenas agradecido pela informação e desligado.

Após essas entrevistas, Folman consegue se lembrar que estava no segundo ou terceiro círculo do cerco aos campos de refugiados. Assim como o resto dos soldados, ele recebeu ordens para atirar torpedos no céu, mantendo-o iluminado durante a noite. O diretor conclui que, à época, se sentiu tão responsável quanto os falangistas libaneses pelo morticínio e que, em decorrência disso, como mecanismo de defesa, sua mente “apagou” todas as memórias relacionadas. A obra se encerra com uma sequência de imagens reais do genocídio.

Embora, como já mencionado, o documentário traga muitos dados históricos, algumas informações importantes ficaram de fora. Nada se fala, por exemplo, sobre o falangista Elie Hobeika, uma das principais lideranças do massacre — o que até pode ser compreensível, já que o documentário entrevista, exclusivamente, israelenses envolvidos no episódio. Mesmo assim, conhecê-lo é um imperativo para que se compreenda o que o correu em Sabra e Chatila.  Grande parte da família de Hobeika, incluindo a sua mulher, fora assassinada pela OLP no Massacre de Damour. Assim, a morte de Bashir foi um pretexto para que o falangista pudesse realizar a sua “vingança” contra uma população civil inocente. E o Massacre de Damour, por seu turno, foi uma vingança por outro massacre, o de Karantina. E assim por diante. Tudo isso revela um ciclo de violência interminável que nos faz pensar que Millôr Fernandes tinha razão quando dizia que “o homem é um macaco que deu errado.”

Outro dado que não aparece — este sim, de presença obrigatória no documentário — é que, em 1983, a Comissão Kaham, formada pelo governo israelense para apurar o ocorrido em Sabra e Chatila, considerou o Ministro da Defesa, Ariel Sharon, pessoalmente responsável pelo massacre (e apesar disso, ele jamais foi julgado pelo crime).

Na época do lançamento, o documentário de Ari Folman teve ampla repercussão e angariou o Globo de Ouro, além de ser indicado ao BAFTA e ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Apesar de lançado há mais de quinze anos, “Valsa com Bashir” é uma obra obrigatória para quem deseja compreender melhor a participação de Israel na Guerra do Líbano de 1982 e a complexidade dos conflitos no Oriente Médio (vem de brinde uma animação deslumbrante e uma aula de psicologia sobre o transtorno de estresse pós-traumático). Do começo ao fim, o absurdo da guerra fica escancarado.