As Lembranças do Porvir, de Elena Garro

As Lembranças do Porvir, de Elena Garro

Li “As Lembranças do Porvir”, de Elena Garro, e ele me fez lembrar que poucas vezes somos tão arrebatados por um livro. A ponto de deixar uma marca indelével em nós. Na esteira de Pedro Páramo, mais pela grandiosidade e estilo narrativo, do que pela semelhança, que acontece em tópicos, Elena Garro construiu uma obra de densidade narrativa e estilística perfeitas.

Em seu papel de avanço da linguagem, “As Lembranças do Porvir” é um exemplar destemido. O texto é lírico de uma maneira estrategicamente elaborada, com parágrafos belíssimos e geniais, onde cada frase é uma obra de arte. A abertura do livro poderia estar entre os melhores inícios de livros de todos os tempos: “Aqui estou, sentado sobre esta pedra aparente. Só minha memória sabe o que contém. Vejo-a e me recordo, e como a água vai para a água, assim eu, melancólico, venho me encontrar em sua imagem coberta pelo pó, rodeada pelas ervas, fechada em si mesma e condenada à memória e a seu espelho variado. Vejo-a, vejo-me e transfiguro-me em muitas cores e tempos. Estou e estive em muitos olhos. Eu sou a memória e a memória que de mim se tenha.”

O narrador é o povoado mexicano que carrega o nome de Ixtepec. Ou melhor, o narrador é um conjunto de coisas. É a densidade das ruas de uma cidadezinha simples e seus habitantes, considerados como um todo social, igual e equilibrado nas linhas de Elena, que observam como vítimas a desolação causada pelo domínio militar, que destoa. Em Ixtepec, o general Francisco Rosas é a lei e para impor seu desejo ele domina a todos com violência.

As Lembranças do Porvir
As Lembranças do Porvir, de Elena Garro (Arte & Letra, páginas)

Francisco Rosas é uma personagem peculiar criada por Elena, pois possui dilemas desconcertantes para o líder de um grupo que o deveria ver como uma rocha sentimental. Ele ama e domina Julia, uma prostituta cuja beleza é avassaladora e, todos sabem, carrega o poder de dominar o colosso militar, mas está presa, em diversos aspectos, a ele, que não admite que ela tenha uma vida livre. Todo o discurso da primeira parte do livro, resume-se a um conjunto de situações de opressão e demonstração de poder do general e seus comparsas sobre o povoado que, em sua voz narrativa única, descreve cada uma das personagens que habitam suas casas e seus estilos característicos de vida.

O general é um misto de mandante cruel e um apaixonado desequilibrado que tenta obter os amores de uma criatura à margem do sentimento, ligada a outro que ronda e ameaça. O estrangeiro é uma sombra que paira e que torna a história misteriosa e envolvente. Sem que um embate físico seja proporcionado para os leitores do livro, dois inimigos sem enfrentam no deserto dos sentimentos. Tudo por uma mulher impossível.

Francisco tem duas armas, com nomes que causam uma sensação espetacular: “Os olhos que te viram” e “A caprichosa”. Armas cuja função é criar os corpos — defuntos que abundam no livro — que fazem refletir sobre a morte no discurso de Elena: “Nem todos os homens alcançam a perfeição de morrer; há mortos e há cadáveres, e eu serei um cadáver”. E segue: “o morto era um eu descalço, um ato puro que alcança a ordem da Glória, o cadáver vive alimentado por heranças, costumes e rendas”. É nesse caminho que a autora reflete sobre o poder e o medo. A angústia de um povoado sitiado pelos homens que herdaram o sentimento autoritário pós-revolucionário no México. Ter uma cidade sua para governar é o sentido da vida de Francisco.

Ainda sobre as mortes, elas são marcadas, na narrativa profundamente introspectiva e profunda, no fato de que as pessoas do povoado precisam enterrar seus mortos, que são detidos pelo comando militar. A compreensão de que um ente morreu, como um evento incontestável, reside no momento sagrado da despedida. Tudo em torno da morte é carregado de mística e austeridade. Uma explicação razoável para chamar-se o cemitério de Campo Santo, ou seja, para torná-lo íntimo do espírito e para que isso sirva de consolo.

O evento divisor de águas, que inaugura a segunda parte do livro, é um espetáculo à parte. A autora flerta com a literatura fantástica, antecipa Gabriel Garcia Márquez, em Cem Anos de Solidão, e causa um alvoroço de ânimos em seu romance, tornando a narrativa mais centrada e interessante. Sem o amor alucinado e desmedido, o homem de poder torna-se mais sanguinário e terrível. Amargura e ódio fazem com que a violência chegue a níveis insuportáveis: “Depois se produziu um silêncio assombroso. O campo santo cheirava à pólvora, os militares calavam diante dos mortos que se esvaíam em abundância e rompiam com seu sangue a harmonia das cruzes azuis e das lousas brancas. As cabeças e os peitos destroçados viviam uma vida intensa e desordenada e o cemitério azul e branco parecia reprovar a sua presença”. A fantasia literária retorna no final do livro, quando o impossível toma o lugar do real e consolida um arco dramático eficaz e inesquecível.

Um estrangeiro, uma prostituta, uma família incomum, um exército de figuras atípicas, um hotel no fim do mundo, uma mulher com um plano e um povoado em vias de se revoltar com sua condição miserável. “As Lembranças do Porvir” é sobre tudo isso, e sobre liberdade. Mas não aquele evento que traduz a obviedade da palavra, mas uma liberdade ancestral, desejada por diversas gerações, em um lugar onde a lembrança do passado massacra e a única esperança é almejar o que virá, o porvir.


Livro: As Lembranças do Porvir
Autor: Elena Garro
Tradução: Iara Tizzot
Páginas: 244 páginas
Editora: Arte e Letra
Nota: 10/10