George Orwell explica por que escrevemos

George Orwell explica por que escrevemos

A revista literária “Gangrel” foi fundada em Londres pouco após a rendição do Japão na 2ª Guerra Mundial. “Gangrel” é uma palavra escocesa que significa literalmente “vagabundo”. Talvez o nome não tenha agradado aos respeitáveis leitores britânicos, já que a publicação trimestral não aguentou nem sequer um ano. Apesar disso, por ela passaram nomes como Henry Miller, Neil M. Gunn e George Orwell, três escritores que ficaram famosos o bastante para serem homenageados em estátuas: Miller está com o falo ereto no Museu ao Ar Livre de Hakone, no Japão (o nome da escultura é “O Pervertido Henry Miller”); o jovem Kenn, protagonista do livro mais celebrado de Neil M. Gunn, “Highland River”, aparece carregando um salmão na vila de Dunbeath, na Escócia; Orwell, por sua vez, encontra-se em um lugar de destaque — de terno, gravata e esculpido em bronze — no saguão da sede da BBC, em Londres.

Em 1946, na quarta e última edição da “Gangrel”, os editores J.B.Pick e Charles Neil solicitaram a alguns escritores que explicassem as razões que os fizeram escrever. Orwell respondeu com o envio do ensaio “Por que escrevo”. Eram onze páginas que logo se tornaram clássicas — e que, por si só, justificaram a existência da “Gangrel”. Nele, o autor de “A Fazenda dos Animais” revela que desde muito pequeno sabia que devia se tornar um escritor.

Em suas palavras: “Eu tinha o hábito, típico de crianças solitárias, de inventar histórias e conversar com pessoas imaginárias, e creio que desde o princípio minhas ambições literárias estiveram mescladas ao sentimento de estar isolado e ser subestimado. Eu sabia que tinha facilidade com as palavras e uma capacidade de encarar fatos desagradáveis, e sentia que isso criava uma espécie de mundo particular no qual eu podia me desforrar do fracasso no cotidiano”.

Apesar dessa predisposição, Orwell relata no ensaio que escreveu pouquíssimos “textos sérios” durante a infância e a adolescência. Suas “atividades literárias” resumiam-se às redações obrigatórias, aos versos de ocasião, às revistas escolares que ajudava a editar e a um relato contínuo de sua vida que só existia na sua cabeça. Assim, por exemplo, ao abrir a porta de um quarto, descrevia a cena mentalmente, com impressionante riqueza de detalhes: “Ele escancarou a porta com ímpeto e entrou no quarto. Um raio de sol, filtrado pelas cortinas de musselina, caía oblíquo sobre a mesa, onde havia uma caixa de fósforos semiaberta ao lado do tinteiro”.

Não é difícil encontrar esse tipo de prática entre escritores. Henry Miller, por exemplo, relata em “Plexus” — livro no qual descreve como se tornou um escritor — que escrevia passagens inteiras na cabeça (inclusive com dois pontos, parênteses e travessões), enquanto planava pelas ruas de Nova York. Essa prática de descrever ricamente o seu entorno, aliada ao “prazer das palavras enquanto tais” — que o autor teria descoberto aos dezesseis anos enquanto lia os versos do “Paraíso Perdido” — criou nele o desejo de “escrever enormes romances naturalistas com finais infelizes, repletos de descrições detalhadas e símiles arrebatadores, e também com muitos trechos rebuscados nos quais as palavras seriam usadas apenas por sua sonoridade”. Isso resultou no seu primeiro romance, “Dias na Birmânia”, que escreveu aos trinta anos.

Revelados esses dados sobre os seus primeiros anos — importantíssimos, pois, conforme ele próprio escreveu, “não acho possível avaliar os motivos de um escritor sem conhecer alguma coisa do seu desenvolvimento inicial” —, Orwell arrisca uma formulação geral, elencando os quatro grandes motivos que existem para alguém escrever, deixando claro que “eles existem em graus distintos em todo escritor, e em cada um deles as proporções variam de um momento a outro, de acordo com a atmosfera em que está vivendo”. Seriam os seguintes:

1 — Puro egoísmo. Parece inegável que há uma grande quantidade de ego envolvida no ato de escrever um livro. Segundo Orwell, seria “o desejo de ser visto como inteligente, de ser tema de conversas alheias, de ser lembrado após a morte, de se vingar dos adultos que o desdenharam na infância etc. etc”. Realmente, quantas pessoas se meteriam no exercício tortuoso de escrever um romance se soubessem que no final ele seria queimado e que ninguém jamais teria a chance de lê-lo? O autor ainda pontua que o egoísmo constitui fonte de motivação para muitas atividades humanas, além da escrita: “Os escritores partilham essa característica com cientistas, artistas, políticos, advogados, soldados, empresários bem-sucedidos — em resumo, com toda a nata da humanidade”. O trecho nos faz lembrar do famoso trecho do livro de Eclesiastes: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade!”.

2 — Entusiasmo estético. O som de certas palavras traz uma vibração particular, uma espécie de “cócega” no cérebro. Mais especificamente, seria “o prazer com o impacto de um som no outro, com a firmeza da boa prosa ou com o ritmo de uma boa narrativa”. A busca por essa sensação constituiria um motivo legítimo — embora dificilmente o único — para se escrever um livro. De acordo com o autor de 1984, todo livro, em algum grau, traz considerações estéticas: “O motivo estético é muito tênue em muitos escritores, mas até mesmo um panfletário ou um redator de manuais tem predileção por certos termos e expressões, que o atraem por razões não utilitárias; ou ele pode ter opiniões fortes a respeito da tipografia, da largura das margens etc”.

3 — Impulso histórico. Orwell o descreve como “o desejo de ver as coisas como são, de descobrir os fatos tal como ocorreram e preservá-los para a posteridade”. Podemos pensar, por exemplo, no relato brutal de Aleksandr Soljenítsyn sobre os “gulags” soviéticos, “Arquipélago Gulag”.

4 — Propósito político. Seria “o desejo de impelir o mundo em certa direção, de alterar a concepção dos outros quanto ao tipo de sociedade que deveriam almejar”. O autor explica que, por sua natureza, os três primeiros motivos prevaleceriam sobre o quarto. Mas, devido às turbulências políticas da primeira metade do século 20 — notadamente, o avanço do totalitarismo —, acabou “sendo obrigado a virar uma espécie de panfletário”. Assim, revela: “Todas as linhas das obras sérias que escrevi a partir de 1936 foram escritas, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático, tal como eu o entendo”.

Tamanho foi o peso que o propósito político adquiriu entre as motivações do autor que, quando se sentava para escrever um livro, pensava: “Eu escrevo porque há uma mentira que quero expor, algum fato para o qual quero chamar a atenção, e a minha preocupação inicial é conseguir ser ouvido”. Não obstante, esse propósito sempre foi acompanhado de um pujante entusiasmo estético, conforme relata no ensaio (referindo-se ao estilo de sua prosa): “Todo aquele que se der ao trabalho de examinar minha obra vai constatar que, mesmo quando se trata de propaganda explícita, ela contém muita coisa que um político profissional consideraria irrelevante”.

Seguindo essa linha, o escritor revela que: “‘A Fazenda dos Animais’ foi o primeiro livro no qual tentei, com plena ciência do que estava fazendo, fundir os propósitos políticos e os artísticos em uma unidade”. É por isso que obras como “1984”, com muita justiça, entraram para o cânone da Literatura — aquela mesma com “L” maiúsculo —, não são meros “panfletos” a favor ou contra determinada política, mas verdadeiras obras de arte, ricas em lirismo e com diversas camadas de significação.

Ao final do ensaio, Orwell novamente se afasta dos “seus” motivos e arrisca outra formulação geral — que, com certeza, encontrará um alto grau de identificação entre os leitores que já passaram pela experiência quase traumática de tentar escrever alguma coisa com começo, meio e fim: “Todos os escritores são vaidosos, egoístas e preguiçosos, e bem no fundo de seus motivos há sempre um mistério. Escrever um livro é uma luta horrível, como o longo acesso de uma enfermidade dolorosa. Ninguém empreenderia nada do tipo se não fosse impelido por algum demônio ao qual não se pode resistir nem tampouco compreender”.