Além da comédia romântica: novo filme da Netflix é um conto de amor, desespero e esperança Divulgação / Netflix

Além da comédia romântica: novo filme da Netflix é um conto de amor, desespero e esperança

O passar do tempo e a maturidade — variações sobre temas irmãos, que não necessariamente convergem para o mesmo fim — impingem-nos a lucidez do raciocínio que prega a importância fundamental de se encontrar no mundo um cantinho que seja nosso, só nosso e de mais ninguém, tendo claro que esse lugar não é um feudo, hereditário, imóvel, eterno, já que a própria vida não é nenhuma dessas coisas, e tampouco é sempre pacífica, idílica, plácida (e na maior parte da jornada é exatamente o oposto de tudo isso).

A personagem central de “Cinzas” leva ao extremo a urgência pelo sonho e mergulha a família numa sucessão de tragédias, a começar pela ruína de uma união feliz — feliz, não perfeita. Erdem Tepegöz é mais um dos diretores turcos a se empenhar em trazer à luz os segredos que habitam o coração de duas pessoas que partilham a vida, mas não se conhecem. Tepegöz faz do roteiro de Erdi Isik um sobe e desce de emoções, sempre mediadas por uma mulher à primeira vista apenas leviana, mas no fundo ingênua, seduzida pelas possibilidades de um universo muito distante do seu. 

Tepegöz faz “Cinzas” parecer mais uma das tantas comédias românticas turcas em que a existência é um balão colorido num céu azul. Contudo, já na primeira sequência, quando Kenan Urgan e a esposa, Gökçe, celebram o décimo aniversário de casamento, ela não esconde os sinais de um certo cansaço, que nem o roteirista nem o diretor são capazes de explicar muito bem.

Kenan, presidente da editora que leva o sobrenome de sua família, diz palavras elogiosas a Gökçe, mas não perde a chance de também enaltecer o trabalho do pai, fundador de um negócio pequeno que em pouco mais de cinquenta anos tornou-se um império. Hábil, o personagem de Mehmet Günsür mistura num mesmo discurso trabalho e afetos, e lembra a seus convivas que grande parte do sucesso de sua editora deve-se a Gökçe, a primeira leitora de todos os manuscritos que lhe chegam à mão.

Funda Eryigit, por seu turno, confere a sua anti-heroína a tristeza que só faz aumentar, degringolando na busca por um homem enigmático, protagonista do romance que dá nome ao filme, um possível novo lançamento da editora Urgan. Gökçe é tomada de assalto por todos os nefastos pensamentos, o desespero a colhe, a tragédia se lança sobre os ela e o marido com sua fúria habitual, mas silenciosa, entrando na conta de um absurdo espantoso, tudo pela ilusão de uma felicidade impossível.

Essa companheira pouco fiel e nada lhana, com que nos acostumamos ainda em tenra idade e que somos obrigados a abandonar por inalcançável. Ela procura M, o marceneiro Metin Ali, de Alperen Duymaz, e nenhum dos três escapa da mão pesada do destino. Uma constante da produção cinematográfica da Turquia.


Filme: Cinzas
Direção: Erdem Tepegöz 
Ano: 2024
Gêneros: Drama/Romance/Fantasia
Nota: 7/10