Olhar cinematográfico sobre uma das maiores crises políticas da história da Grécia está na Netflix Divulgação / K.G. Productions

Olhar cinematográfico sobre uma das maiores crises políticas da história da Grécia está na Netflix

Ninguém melhor que os gregos para rirem de suas tragédias. Após esse necessário respiro, tomado o fôlego que revigora, aquele povo não se furta a encarar pelejas, batalhas, guerras — as fraticidas, inclusive —, e arranca da vida as revoluções, as metamorfoses a que julga ter direito, e nisso também poucos os superam, desde Clístenes (565 a.C. – 492 a.C.). O pai da democracia, esse preceito falho, injusto, MOROSO, e assim mesmo superior a qualquer outra doutrina de administração pública sobre a qual se possa elucubrar, ficaria orgulhoso de seus patrícios neste tresloucado século 21, para o bem e para o mal um tempo especialmente incerto, belicoso, suscetível a ventos de través que deságuam em tempestades mandadas pelo próprio Posêidon.

Em “Jogo do Poder”, Costa-Gavras captura o espírito de sua época, uma quadra não necessariamente cronológica, muito mais anímica, e, claro, não tarda a aplicar suas percepções em seus filmes, o que vem fazendo com relativo êxito há mais de meio século. É preciso, contudo, uma dose generosa de boa vontade para apreciar as intenções do veterano, dedicado a esventrar uma das rupturas político-econômicas mais impactantes da história da Grécia, hoje uma nação próspera, mas escaldada quanto a possíveis novas tentativas de se reinventar a roda. 

O caráter hagiográfico de “Jogo do Poder” não demora a se fazer notar. A trajetória inconstante de Yanis Varoufakis, o ministro das Finanças do governo Aléxis Tsípras, concorre para a análise profunda das medidas adotadas pelo chefe de governo em meados de 2015, quando, numa rodada de negociações vedada à imprensa e economistas independentes, decidiu-se pela saida da Grécia da União Europeia, o chamado Grexit. Com isso, Tsípras, primeiro-ministro grego entre 26 de janeiro e 27 de agosto de 2015 e de 21 de setembro de 2015 até 8 de julho de 2019, pretendia sustar o pacto internacional costurado com os demais países que integram o bloco e reconsiderar tratativas anteriores quanto a ter de volta, em prazo menor, restos da dívida com a UE, manobra arriscada e de consequências imprevisíveis sobretudo, por evidente, para os pequenos e médios empresários.

A visão desabridamente messiânica dispensada a Varoufakis, interpretado com dignidade e arrojo cênico por Christos Loulis, se explica com risível facilidade: o próprio ex-ministro assina o roteiro, baseado em sua autobiografia “Adults in the Room” (“adultos na sala”, em tradução literal) — cujo subtítulo grandiloquente e autoelogioso remete a uma certa “batalha contra os sistemas europeu e americano profundos”, em tradução livre —, junto com o diretor, o que diminui muito a vontade de se levar o filme a sério, conquanto a pesquisa cartesiana de Costa-Gavras, já colocada à prova em “Z” (1969) e “Estado de Sítio” (1972), redima o pendor laudatório de seu trabalho. O cineasta, um progressista que consegue deixar insatisfeitas a esquerda e a direita, aqui paga um tributo exagerado e um tanto constrangedor ao político, aquela espécie de utopista que derrete PIBs e lança milhões à indigência numa canetada.


Filme: Jogo do Poder
Direção: Costa-Gavras
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Biografia
Nota: 7/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.