O humor como salvação virou um dos maiores lugares-comuns da indústria cultural contemporânea — isso quando não é só uma deslavada mentira mesmo. Quase ninguém ousa ir contra a maré selvagem do consenso, mas nas raras vezes em que isso acontece, há que se louvar a intrepidez do valente, e Fernando Frías de la Parra é um especialista em romper correntes sem nenhuma cerimônia.
Em “Ninguém Precisa Acreditar em Mim”, De la Parra continua firme em seu propósito de demolir certas convenções sobre o que se foi estabelecendo como verdades monolíticas nas relações humanas, misturando nesse caldeirão inferências sobre de que maneira aspectos bastante íntimos da vida de alguém vão mudando sua visão de mundo da forma mais radicalmente irreversível, até que reste pouco além de cinismo e amargura, armas de que se dispõe com uma frequência e uma convicção que terminam por derruir qualquer esperança, mesmo falsa, de retorno.
Adaptado do romance homônimo do mexicano Juan Pablo Villalobos, ganhador do Prêmio Herralde de Novela, concedido todos os anos na Espanha a uma novela inédita em castelhano, o texto do diretor exacerba os pontos de tensão delineados por Villalobos, compondo uma narrativa a um só tempo imprevisível e orgânica.
O caminhão do lixo recolhe um monte de papéis e entulho, mas do que resta, um morador de rua saca uma página e começa a ler uma história sobre um garoto e seu primo Lorenzo, dois adolescentes na Guadalajara do fim dos anos 1990. Eles deveriam ter ido ao cinema assistir a um filme de ação, mas seguem para a casa de um amigo dos dois, onde uma fita de sexo explícito aguarda por eles. De la Parra captura à perfeição o espírito multivalente da pena de Villalobos, e vai amalgamando numa única cena uma pletora de assuntos, até que chega ao princípio da vida adulta de Juan Pablo, o protagonista,na iminência de ir a Barcelona para fazer um doutorado em que pretende investigar em que medida a literatura latino-americana foi influenciada pelas mais diversas expressões de comicidade.
Antes de dar início a uma das maiores aventuras de sua vida até então pacata, na Universidade Pompeu Fabra, Juan Pablo volta à Guadalajara da infância, onde moram seus pais, e esbarra com Lorenzo, que em nada mais lembra o garoto meio ingênuo de há vinte anos. Envolvido com uma das quadrilhas mais violentas do inclemente narcotráfico do centro-oeste de México, o personagem de Darío Rocas é morto na frente dele. É o bastante para que Juan Pablo, composição plena de nuanças de Dario Yazbek Bernal, seja caçado por bandidos até depois de desembarcar na Espanha, e não só ele: Valentina, a namorada vivida por Natalia Solián, também entra no radar da organização.
O filme avança conforme os registros do anti-herói de Bernal tomam corpo, numa curiosa brincadeira metalinguística, e nunca se consegue saber o que há ou não de autobiográfico na pena de Villalobos — fora o nome do personagem central, por óbvio. O caso com Laia, filha de um político catalão poderoso, acrescenta ainda mais mistério ao que De la Parra conta, e Anna Castillo faz a ponte entre o mundo excessivamente utópico de Juan Pablo e a vida como ela é, da qual ele se recorda aqui e ali por causa de uma dermatite nervosa.
Filme: Ninguém Precisa Acreditar em Mim
Direção: Fernando Frías de la Parra
Ano: 2023
Gêneros: Comédia/Suspense
Nota: 8/10