Thriller inspirado em Edgar Allan Poe e Dostoiévski está na Netflix Divulgação / Parakino Filmes

Thriller inspirado em Edgar Allan Poe e Dostoiévski está na Netflix

A solidão das grandes cidades enlouquece ou apenas revela o monstro que habita em cada um de nós? Diego Freitas tenta responder a essa pergunta, depois de um cuidadoso passeio por dentro da psique atormentada de um estudante de cinema em “O Segredo de Davi”, história que passa de um condensado noir à Edgar Allan Poe (1809-1849) a um romance psicológico com o melhor do Dostoiévski de “Crime e Castigo” (1866). Em sua estreia na direção de longas, Freitas apresenta um trabalho que prima pelo detalhe, pela sofisticação, pela recusa ao óbvio, atributos que, não raro, são confundidos com hermetismo, pernosticidade, empáfia, tédio. Este talvez seja o melhor da recente e já prolífica lavra do diretor, paulista de Mairiporã, região metropolitana da capital, que, naturalmente, teve de fazer concessões ao que pede o mainstream e à pasteurização, como atesta “Depois do Universo”, campeão de audiência na Netflix em 2022, “Tire 5 Cartas” (2023) e “O Lado Bom de Ser Traída” (2023), os dois últimos com estreias calculadamente distribuídas entre a plataforma e as salas de cinema. Não se sabe para onde irá a carreira de Freitas, que tem todo o direito de querer sonhar com fortuna e celebridade. Entretanto, tudo o que se pede é que faça mais filmes como este, ainda que de longe em longe.

Além de tudo, “O Segredo de Davi” é bonito. Uma luminosidade difusa infiltrando-se em contra-plongeé pela vasta copa de árvores grandes é o primeiro dos muitos truques com que o diretor-roteirista avança sobre a jugular do público, e a ótima fotografia de Kaue Zilli continua a se manifestar em vários outros lances. Um menino empunha um revólver dourado, e antes que dispare, um homem surge por trás e orienta o tiro. A edição, a cargo do próprio Freitas e Luiz Felipe Moreira Paulin, vai e volta no tempo no nítido propósito de sublinhar a confusão da vida do misterioso protagonista citado no título, mas nesse ponto o uso perspicaz dos recursos que mudam sem cerimônia o eixo da narrativa seria miseravelmente desperdiçado se Nicolas Prattes não estivesse no absoluto controle do personagem. Com Davi, um estudante de cinema que encara a vida sob a proteção de uma câmera de vídeo, o diretor parece externar o desejo de fazer confissões para além do set. Aos vinte anos, morando sozinho no centro de São Paulo, sua grande aspiração é conseguir ficar invisível e assim registrar tudo quanto as outras pessoas não veem e não querem ver. A relação platônica que desenvolve por Maria, a vizinha do prédio da frente, é o ponto de virada que Freitas elabora a fim de decifrar o tal enigma de Davi. Traumas do passado materializam-se na figura de velha reclusa de Neusa Maria Faro (1945-2023), e nesse diapasão também vibra Jônatas, o homem lendo “Fédon” (387 a.C.), de Platão (428 a.C-348 a.C), que conhece na saída da aula. Essa outra esfinge talvez vá despertar os bem-contidos impulsos sexuais de Davi, mas na verdade o tipo encarnado por André Hendges é o elo entre o anti-herói de Prattes e sua própria história, instante em que o enredo torna ao início e quase o absolve pelos crimes que não cometeu — ou não cometeu da maneira como o espectador imagina. A mensagem que Freitas pretende transmitir com seu filme é que não há nenhum grande segredo que não possa ser desvendado, ainda que os mortos não acusem nosso esquecimento.


Filme: O Segredo de Davi
Direção: Diego Freitas
Ano: 2020
Gêneros: Mistério/Crime
Nota: 8/10