Filme que ganhou o Oscar, foi aplaudido de pé e fez as pessoas brigarem nos cinemas, está na Netflix Divulgação / Focus Features

Filme que ganhou o Oscar, foi aplaudido de pé e fez as pessoas brigarem nos cinemas, está na Netflix

Filmes como “Bela Vingança” podem ser particularmente temerários numa época em que expressões como “masculinidade tóxica” e “sororidade” pularam das rodas de conversa direto para as páginas dos jornais e os debates na televisão, e mulheres reivindicam — e conseguem — os mesmos direitos que os homens. O comportamento masculino nunca foi modelo em vários aspectos, e esse é o ponto de onde o enredo começa a ganhar substância, revelando os descaminhos emocionais de uma jovem mulher numa jornada de autodescobertas que sai do plano do desejável num episódio com a marca de agressões de muitos feitios, inauguradas pelo sexo.

Há um laivo de feminismo militante, artificioso, delinquente até, no que a diretora Emerald Fennell oferece ao público, mas a algum custo, a história se encaixa numa espécie de padrão, em que a mocinha sofre suas agruras, lamenta-se, pranteia sua dor, mas recupera o domínio sobre a própria vida de um jeito muito característico, escolhendo com cuidado do que quer se lembrar e o que não pode esquecer ao longo do caminho, feito dos muitos pedaços nada felizes onde já não há mais espaço para se varrer o que quer que seja para debaixo do tapete da memória.

Na primeira sequência, a câmera se fixa na linha da cintura de homens dançando numa festa. Trata-se de um evento corporativo, em que mulheres são a ínfima minoria, mas fazem questão de se fazerem presentes, já que não existe nenhuma regra que preveja o contrário, a exemplo do que acontece nos clubes de golfe. Surge, como por encanto, uma mulher embriagada num sofá vermelho.

Cassandra é observada por uma turma de homens cujo teor ofensivo, aparentemente, se resume ao linguajar chulo e às opiniões repulsivas sobre mulheres que viram a noite esvaziando garrafas e terminam naquele estado — condição degradante para qualquer um, a despeito do gênero. Meio coagido pelos outros dois, Jerry, o falso bom moço de Adam Brody, se dirige até ela, que supõe ter perdido o telefone, e se oferece para levá-la em casa, uma vez que ele também está de saída, diz.

Ninguém tem a menor dúvida quanto ao que vai acontecer pouco depois que eles saltarem do carro de aplicativo, no qual se ouve uma música das Spice Girls — a saborosa trilha de Anthony Willis inclui no meio do segundo ato uma versão de “Toxic”, de Britney Spears, na iminência do conflito mais devastador do roteiro de Fennell. O que se passa no apartamento de Jerry serve de ponte a esse momento da trama, ao qual Ryan, o outro canalha limpinho, de Bo Burnham, paga seu tributo, vítima de uma chantagem inescapável maquinada pela protagonista.

Carey Mulligan oferece uma grata surpresa como a ex-estudante de medicina obrigada a abandonar o curso após a violação de Nina, a amiga que nunca aparece, mas em torno da qual a narrativa está sempre girando, sobretudo nos desdobramentos de uma despedida de solteiro numa cabana, a que ela comparece, sem convite e fantasiada de Arlequina. O bárbaro em “Bela Vingança” assusta, porém a engenhosa conclusão, com direito a mensagens do além para o telefone de Ryan, absolve Cassie. Tremei, patifes!


Filme: Bela Vingança 
Direção: Emerald Fennell
Ano: 2020
Gêneros: Thriller/Crime
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.