A ficção paranoica de Don DeLillo

A ficção paranoica de Don DeLillo

Foi lançada neste ano a nova edição brasileira de “Submundo” (1997), do escritor norte-americano Don DeLillo. O romance é uma das principais narrativas contemporâneas. Por coincidência ou não, poucos meses atrás a Netflix colocou em sua programação o filme “Ruído Branco”, de Noah Baumbach, que é uma versão do premiado livro do autor. É uma oportunidade de conhecer a obra de um dos romancistas mais interessantes dos últimos 50 anos. Ele inovou ao criar uma ficção baseada em conspirações, paranoia e males da tecnologia e do consumo moderno.

Submundo
Submundo (Companhia das Letras, 816 páginas)

“Submundo” é um romance de 700 páginas que sintetiza a obra de DeLillo — os seis primeiros livros do autor não saíram no Brasil. O fio condutor da história é uma singela bola de beisebol, usada na final do campeonato americano de 1951. Daquela partida em diante, ela passa de mão em mão até chegar ao personagem Nick Shay, especialista em lixo e resíduos tóxicos, nos anos 1990. A bolinha é insignificante, teria possivelmente como destino uma lixeira, mas se tornou uma relíquia de colecionador. E a certa altura, o narrador compara o tamanho da bola ao núcleo da bomba atômica.

Quando ninguém mais falava de perigo nuclear e todos celebravam o Fim da História no final do século 20, DeLillo colocou a bomba no centro de um romance contemporâneo. O fim do mundo foi parar na sala de leitura. A tecnologia atômica mostrou os limites da espécie humana: se for usada, ela mata todas as pessoas, produz apenas destroços e acaba com o planeta. Por isso, o lixo, os resíduos, são centrais em “Submundo”. Outra personagem importante da história é Klara Sax, que usa aviões abandonados para criar instalações artísticas no deserto. A sucata remodelada vira arte contemporânea.

Em seus livros, DeLillo realiza uma remixagem de pedaços ou restos de estilos: ficção científica, romance policial, distopias, paranoia, conspirações, para gerar uma forma nova de narrar. O que seria apenas lixo cultural, porém, se transforma em grande arte do pensamento e da literatura. Devorar tudo também é a forma de a sociedade norte-americana se organizar e controlar a economia global. Os Estados Unidos fazem a combinação de dinheiro, tecnologia, guerras, armas e, sobretudo, produção da cultura para consumo mundial (haja vista o cinema e a música pop).

Estética do contrabando 

Num livro inovador, o crítico Michael Nass classificou como “contrabando” a escrita de Don DeLillo. Trata-se de uma obra ficcional que transita pelas zonas cinzentas de várias matérias do capitalismo: drogas, armas, consumo do erotismo, todas atividades que rondam o universo legal e o ilegal. Ou seja, estamos falando de criminalidade e negócios ao mesmo tempo. No romance “Cosmópolis” (2003), por exemplo, a economia global aparece na forma de uma imensa pilhagem, de enriquecimento banal, que gera revoltas populares numa Nova York colapsada.

Ruido Branco
Ruído Branco (Companhia das Letras, 320 páginas)

O uso de variadas formas literárias também é uma forma de contrabando do autor. Nos livros de DeLillo, a presença da mídia torna-se algo sufocante. Está todos os lugares, sendo capaz de devorar até lemas do marxismo e exibi-los em letreiros de rua. Tudo vira fetiche (aquilo que não sabemos por que idolatramos): o celeiro mais famoso dos EUA em “Ruído Branco”, a bolinha de beisebol de “Submundo”, a limusine high tech de “Cosmópolis”, a performance do sujeito que se joga de prédios em “Homem em Queda”. Esses objetos e pessoas se transformam em instalações de artes plásticas.

A crítica da sociedade em eterna performance já aparecia em “Ruído Branco”. O protagonista Jack Gladney é um professor de estudos sobre Hitler, reunindo todos os tipos de quinquilharias e de produção cultural sobre o líder nazista. É uma fetichização que devora a História. O livro “Running Dog” (1978) vai nessa linha e conta a história hilária de uma investigação para encontrar um filme pornô com o próprio Hitler. DeLillo é um mestre da ironia e da sátira, cujo alvo é a fantasia social criada em torno do capitalismo, dos Estados Unidos, da tecnologia e da cultura.

Apesar de se tratar de uma ficção calcada em temas atuais, Perry Anderson notou que DeLillo escreve também um novo romance histórico quando inclui passado em seus livros. Mas, ao invés de otimismo científico do século 19, essa narrativa que pretende ser História focaliza as catástrofes. “Submundo” busca reconstituir, em chave paranoica, as formas da sociedade norte-americana em sua fase hiper-integrada aos artefatos tecnológicos a partir dos anos 1950. Já o romance “Libra” trouxe ao primeiro plano a figura histórica de Lee Oswald, assassino de John Kennedy, criando uma visão de “baixo” do país — numa contranarrativa da nação.

Colapsos do mundo

Mesmo que seja uma expressão banalizada, a desconstrução pode ser uma chave de leitura para a obra de DeLillo. Mas é uma desconstrução que olha para as fraturas sociais e culturais. A terra das oportunidades, do self-made man, da conquista do Oeste, nada mais é do que uma terra devastada. A imagem do país próspero se negativa, por meio das várias vozes de personagens — cada um deles mais esquisito do que o outro. Em “Cosmópolis”, Eric Packer é um financista de 28 anos que está numa limusine, nas ruas de Nova York, preso nas manifestações antiglobalização e vivendo um inferno de situações absurdas.

Cosmopolis
Cosmópolis (Companhia das Letras, 200 páginas)

Nos anos 2000 em diante, as narrativas de DeLillo ficaram mais enxutas e mais ácidas em relação ao cenário global. As obras se encaixam bem na ideia de “literatura-mundo” de hoje, delineando as grandes questões. O romance “Homem em Queda” (2007) traz o personagem Keith, que sai vivo da queda das torres gêmeas em 11 de setembro de 2001. Como sobreviver ao maior evento do século 21 até agora, comparável apenas ao colapso da economia americana em 2007 e à pandemia de Covid de 2020? Como grande artista que é, o autor tenta desvendar o que resta ao ser humano depois de tantas catástrofes.

Alguns podem achar que se trata de pessimismo ou de niilismo. Mas o fato é que os romances de Don DeLillo ainda têm a ambição de decifrar o mundo, com um olhar detido na “condição da cultura” — esta que também era um dos objetos de interesse de um autor como Martin Amis nos livros “Grana” e “A Informação”. A literatura pode ser muito mais do que apenas um jogo linguístico ou estilístico sem conexão com as coisas do mundo. E os livros mais recentes de DeLillo mergulham no pesadelo da modernidade. Saem de lá com mil histórias para contar.

O romance “Zero K” (2016) se detém no tema da criogenia, uma tecnologia que fascina os bilionários há décadas. Como driblar a morte, tendo muito dinheiro? Essa é uma fantasia que ronda a cultura americana. O personagem Ross leva sua atual esposa, Artis, para o interior da Rússia. Ela está severamente doente e aceita congelar seu corpo no projeto Convergência. Ele está abalado com a situação e decide acompanhar a mulher, aceitando também se submeter à criogenia. A morte é um dos únicos fatos da natureza que não se conseguiu controlar. 

No entanto, Ross desiste de ser congelado na última hora, indo somente a esposa para o processo criogênico. Afinal, muitos de seus negócios financeiros dependem de sua presença física (e narcísica). A narrativa é desconcertante ao discutir o que é a morte, a perda na crença de que o futuro possa nos redimir, o desejo de renascer no futuro. Apenas as monstruosidades da Ciência como a criogenia podem nos salvar ou seria melhor a ordem natural das coisas? É assustador o capítulo do livro que descreve os pensamentos de Artis já congelada na cápsula criogênica. 

Um colapso do mundo (num paralelo com a pandemia de Covid-19) aparece na breve narrativa “O Silêncio” (2020). A história criada por DeLillo se passa no ano de 2022. Um imenso apagão atinge os Estados Unidos na noite do Super Bowl, a final do campeonato de futebol americano. Nada funciona: televisão, internet, energia, sinais de trânsito. O mundo para de uma hora para outra. A roda da economia cessa e provoca uma série de efeitos negativos. Ou seja, é o mesmo desastre social que se viu nos primeiros meses da pandemia e que ainda produz rescaldos pelo planeta.

Silencio
O Silêncio (Companhia das Letras, 112 páginas)

Em “O Silêncio”, três personagens estão num apartamento em Nova York à espera de um casal que está voltando da Europa e enfrenta um violento pouso de emergência do avião. Tudo numa mesma noite: o drama pessoal e o colapso da cidade. O livro traz as obsessões de sempre de DeLillo: caos tecnológico, paranoia da sociedade norte-americana e fixação pelo que se passa na mídia. O mundo, segundo o autor, não suporta uma interrupção brusca. Precisa se mover de imediato, sendo uma máquina de produção. Mas está sempre flertando com um retorno à condição primitiva no planeta.

Em meio ao colapso global, a matéria-prima para os artistas tem os nomes de mudanças climáticas, extrema-direita populista, fake news, caos de informação pela internet, inteligência artificial, endividamento financeiro, fetiche do dinheiro, escassez de recursos, fundamentalismo religioso, crise migratória e a guerra em construção entre China e EUA (Ucrânia contra Rússia é o ensaio geral). “Não sei com que armas se lutará na Terceira Guerra Mundial, mas na Quarta Guerra Mundial será com paus e pedras”, diz a epígrafe com texto de Albert Einstein e usada em “O Silêncio”.

Todos os romances de Don DeLillo