Para mudar sua forma de encarar a vida, filme da Netflix vai apaziguar sua alma Divulgação / Alfonso Pompo Bresciani

Para mudar sua forma de encarar a vida, filme da Netflix vai apaziguar sua alma

Milagres são mesmo um bom parâmetro para se determinar a qualidade da vida. Pode até ser verdade que basta pedir para se receber, mas é ainda mais verdade que para tanto é necessário saber o que pedir, e como, e para quem. Misturando um sem número de chavões com juízos algo originais sobre o quão misteriosamente encantadora a vida pode ser, “O Segredo: Ouse Sonhar” transita com galhardia do território da dureza do existir com todos os seus indefectíveis percalços, onde nos reconhecemos todos, para algum lugar cujo centro ninguém consegue situar muito bem, mas que qualquer um é capaz de sentir, longe, no espaço de uma eternidade numa outra dimensão ou perto o suficiente para ser tomado como parte mesma do ar que se respira, da água que se bebe, da carne que reveste uma alma feita de estrelas.

Baseado em “O Segredo” (2006, Sextante), livro da australiana Rhonda Byrne, fenômeno imbatível da autoajuda com seu milhão de cópias vendidas já no lançamento, o filme de Andy Tennant explora o quanto pode as surradas metáforas acerca do acaso, poder de escolha, livre-arbítrio, família, amor, casamento, nessa ordem, empenhando-se por dar um verniz de frescor a cada um desses tropos, desenvolvidos cada qual no seu próprio tempo, deixando o longa pesadão, demasiado episódico, involuntariamente didático e  risivelmente presunçoso em certos momentos. Malgrado dê eco a muitos dos piores cacoetes do texto indigente de Byrne, o roteiro de Tennant, Bekah Brunstetter e Rick Parks ao menos pula de uma para outra matéria num andamento ritmado, o que faz a narrativa desviar-se do constrangimento tedioso de permanecer no mesmo assunto sem nenhuma previsão de virada. Previsão, aliás, é o que não falta aqui.

Katie Holmes, para não variar, torna a salvar a lavoura. Para sua Miranda Wells, uma mulher de cuja aura evola aquela luz meio baça das criaturas acossadas pela vida, parece um delito sem perdão sonhar com alguma normalidade. Hazel, o furacão que varreu o sudeste dos Estados Unidos em 2013 e só parou ao bater de frente com um paredão de nuvens de gelo no Canadá, chacoalhou muito mais que apenas a velha casa onde mora com Missy, Greg e Bess, os filhos vividos por Sarah Hoffmeister, Aidan Pierce Brennan e Chloe Lee. Tennant vale-se de mais essa figura de linguagem, avassaladora e óbvia, para mencionar, com toda a parcimônia, as muitas incorreções na existência da mocinha — e existência, em contraposição a vida, que são coisas a um só tempo muito parecidas, mas muito distintas entre si, como os braços direito e esquerdo de um mesmo corpo. O longa vai ganhando um pouco mais de sentido e identidade graças à maneira como o diretor administra o filme dentro do filme depois da passagem de Hazel, que deixou uma lembrancinha nada fofa que Miranda terá de administrar. Nesse embalo, entra na história Bray Johnson, o professor aloprado de Josh Lucas, que assume de uma vez o papel de candidato a novo dono do coração da protagonista, viúva de Matty há cinco intermináveis anos, empreiteiro, pai de criação dos meninos, melhor amigo de Bobby, a mãe do finado marido de Miranda (com Celia Weston em boas aparições ao lado de Holmes), arquirrival de Tucker Middendorf, o ricaço incorporado por Jerry O’Connell, e, o mais importante, portador da notícia que há de transformar a vida da heroína e seus adoráveis rebentos.

É o caso de uma vez se louvar a destreza de Katie Holmes em papéis cuja substância dramática tem o condão de multiplicar inúmeras vezes em filmes medíocres tirados do lixo pseudoliterário que vai infestar a sociedade contemporânea com vigor crescente autorizado… pela própria sociedade contemporânea. Desde que surgiu no cenário artístico, no drama “Tempestade de Gelo” (1997), de Ang Lee, e se tornou mundialmente famosa graças ao seriado teen “Dawson’s Creek” (1998-2003), no ano seguinte, Holmes vem se burilando como atriz, contando com o auxílio de diretores atentos, como Karen Leigh Hopkins, com quem compôs uma bela parceria em “A Justiceira” (2014), no qual apresentou uma Mary Meadows tocante em sua flutuação emocional, o trabalho de sua vida até agora. Da mesma forma que a protagonista do filme de Hopkins, Miranda Wells, com o sinal trocado, arranca do público a aprovação de que sua personagem tanto necessita, estendendo esse ativo para o trabalho de Tennant por inteiro. Não faço ideia de quanto foi o cachê de Holmes nesse filme; só sei que ela decerto não cobrou tudo quanto vale. É um imenso prazer para um crítico deparar com interpretações assim maiúsculas de uma atriz tão segura de seu ofício, que até parece debochar da história que encabeça. Hollywood precisa aprender a valorizar suas novas divas.


Filme: O Segredo: Ouse Sonhar
Direção: Andy Tennant
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.