Milan Kundera e a leveza moderna

Milan Kundera e a leveza moderna

A vida nunca foi fácil para quem vive na Europa Central. Historicamente, um polonês ou um sérvio precisa se equilibrar entre duas culturas em litígio constante: a alemã e a russa. Nos últimos cem anos, houve as duas guerras mundiais e as localizadas (como a mais recente na Ucrânia), por conta do conflito dos dois países. No meio de um inferno destes, porém, surgiu uma produção cultural e literária sem igual (incluindo a criação da psicanálise) que inventou, decifrou e criticou a modernidade do século 20.

Faz 40 anos que o mundo tomou conhecimento definitivo de um criador importante do universo centro-europeu. Trata-se do tcheco Milan Kundera (hoje cidadão francês), que se tornou fenômeno global com o romance “A Insustentável Leveza do Ser” (1982). No Brasil saindo de uma ditadura, o livro ocupou por anos o topo da lista de mais vendidos. Todos e todas liam no começo dos anos 1980 a obra que misturava as temáticas do sexo e da política, no momento que começava a visão da “modernidade líquida”.

Milan Kundera
A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera (Companhia das Letras, 344 páginas)

A ideia do “líquido” foi desenvolvida e popularizada por Zygmut Baumann, outro centro-europeu que invadiu a cultura global. Relações afetivas deixam de ser estáveis, os fluxos de mercadorias tornam-se incessantes pelo mundo, ou seja, um cenário que demanda um sujeito flexível. E essa figura aparece no personagem Tomas, criado por Kundera. Um médico cirurgião na Tchecoslováquia dos anos 1960, em plena disputa de autonomia do país, sonhos de liberdade e o fantasma da pressão dos soviéticos.

Tomas é um “don juan” contemporâneo que conhece por acaso uma garçonete, Tereza, em uma viagem pelo interior do país, longe da capital Praga. Ele é o homem que pula de galho em galho nas relações amorosas, volúvel, mas de repente encontra a moça singela de quem não consegue se separar. Da mesma forma, está sempre preso a Sabina, a personagem que também encarna o espírito livre. A incapacidade de se fixar é o que gera a sensação de “leveza” (e de incômodo) do título do livro.

Kundera mostra à exaustão a intenção de criar uma narrativa de cunho filosófico. Segundo os personagens do livro, o ser humano valoriza o “peso” das coisas da vida e necessita, na verdade, da “leveza” para se manter vivo — até que isto se manifeste como algo insuportável. A dialética fornece a estrutura da escrita de “A Insustentável Leveza do Ser”, a oscilação de uma coisa à outra.

Romance filosófico

A indústria cultural estimula a desconfiança em relação aos “best-sellers”. Tudo que vende muito deve ter qualidade rebaixada, ser ruim, diz o senso comum dos intelectuais, e evidentemente Kundera provoca a dúvida nos leitores. Não estamos comprando gato por lebre? Um dos primeiros a atinar para a importância do escritor tcheco foi o italiano Italo Calvino. Quando escreveu as famosas seis propostas para o próximo milênio em 1984, o autor de “Cidades invisíveis” colocou em primeiro lugar a proposta da “leveza”.

“Muito dificilmente um romancista poderá representar sua ideia de leveza ilustrando-a com exemplos tirados de vida contemporânea, sem condená-la a ser o objeto inalcançável de uma busca sem fim. Foi o que fez Milan Kundera de maneira luminosa e direta”, escreveu Calvino, que acrescentou: “Seu romance ‘A Insustentável Leveza do Ser’ é, na realidade, uma constatação amarga do Inelutável Peso do Viver: não só da condição de opressão desesperada e all-pervarding [todo penetrante] que tocou por destino ao seu desditoso país, mas de uma condição humana comum também a nós, embora infinitamente mais afortunados. O peso da vida, para Kundera, está em toda forma de opressão; a intricada rede de conspirações públicas e privadas acaba por aprisionar cada existência em suas malhas cada vez mais cerradas”.

Calvino ajudou a consolidar a fama de Kundera como um escritor que se ancora na tradição filosófica, sobretudo a iluminista de Denis Diderot. Em 1981, o escritor tcheco deu a senha ao criar sua única peça teatral, “Jacques e Seu Amo”, uma reescrita de “Jacques, o Fatalista, e Seu Amo” (1778). O pensador francês foi um mestre da sátira e do riso com olhar para a sociedade. Não é à toa que também foi um autor de cabeceira do brasileiro Machado de Assis.

Diderot detectou o nascimento do sujeito moderno que desemboca no Tomas de Milan Kundera. O personagem sem compromisso com nada, um tanto cínico, que parece um desocupado, mas que é central para desvendar as normas sociais e culturais. É o modelo de intelectual crítico da sociedade que carrega um certo ressentimento em relação a tudo e a todos. Hegel foi um dos que se deteve longamente na leitura do livro “O Sobrinho de Rameau”, de Diderot, para pensar esse novo personagem social.

“Não é uma casualidade que ‘Jacques e Seu Amo’ tenha sido recentemente ‘refeito’ sob forma teatral e moderna por escritor inteligente como Milan Kundera. E que o romance de Kundera, ‘A Insustentável Leveza do Ser’, o revele como o mais diderotiano dos escritores contemporâneos por sua arte ao mesclar romance de sentimentos, romance existencial, filosofia e ironia”, observou Italo Calvino, em 1984.

Força do riso

Em sua famosa conversa com o norte-americano Philip Roth, Kundera apontou suas fontes de inspiração literária. São os escritores das sátiras e do riso. Fica claro a presença de traços dos satiristas na construção do personagem Tomas — seria uma “pena da galhofa e a tinta da melancolia”, das quais falava nosso diderotiano Machado. Os ensaios do livro “Os Testamentos Traídos” (1993) são o elogio sincero de Milan Kundera para o uso do humor de forma subversiva, tanto no lado estético, como no político.

“Gosto muitíssimo da cultura francesa, e devo muito a ela. Em particular, à literatura mais antiga, Rabelais é, de todos os escritores, o que mais amo. E Diderot. Adoro ‘Jacques, o Fatalista’, tanto quanto adoro Laurence Sterne. Eles foram os maiores experimentadores formais de toda a história do romance. E os experimentos deles foram, digamos, divertidos, cheios de alegria e júbilo, coisas que desapareceram da literatura francesa e sem as quais tudo na arte perde o significado”, diz Kundera a Roth.

O caráter político de Kundera é outro elemento, além do sexo e da sátira, que move a narrativa de “A Insustentável Leveza do Ser”. Isso fica explicitado na quinta parte, “A leveza e o peso”, que conta a história do texto de Tomas sobre o personagem Édipo Rei. O artigo é publicado na imprensa de Praga. Para ele, os comunistas que entregaram de mão beijada a Tchecoslováquia aos soviéticos deveriam ter uma tomada de consciência como a de Édipo e se punir.

O problema é que o texto de Tomas sofre cortes pela censura interna da publicação, saindo apenas com a tese da punição. Os comunistas odiaram evidentemente o material. E quem acabou sendo penalizado, foi Tomas. Tal como o Édipo, ele acaba no exílio e expulso de Praga. Deixa o emprego de médico e vira um limpador de janelas em Zurique, na Suíça, que é um espaço mítico dos exilados políticos da Europa ao longo do século 20. Estamos num mundo sem culpa — mas em busca de culpados.

Prosa do mundo

No livro de ensaios “A Cortina” (2005), Kundera mostrou o quanto é um mestre do pensamento, a partir da literatura. Ele entrou, por exemplo, na discussão sobre a existência de uma “literatura mundial”, ou seja, obras que vão além do conceito de nação. Antes Goethe e Marx pensaram a “weltliteratur” (a literatura-mundo). Será que realmente existe uma ficção universal hoje, em tempos de globalização, de um mercado comum dos europeus? Contra as indicações, o autor tcheco manifesta um ceticismo: não há um cosmopolitismo ou universalismo.

Milan Kundera
Milan Kundera

As grandes e as pequenas nações mantêm os provincianismos, diz Kundera. Se é um país menor, mesmo na Europa, os autores nunca acham que podem atravessar fronteiras e ter ambições mais amplas. No caso dos grandes países (Alemanha, França, Itália), nota o autor, eles são tão autossuficientes que acreditam na universalidade de sua própria cultura nacional e se fecham em si mesmos. Não buscam, portanto, o “grande contexto” e ficam no seu reconfortante provincianismo.

“A possessividade da nação em relação aos seus artistas manifesta-se como um terrorismo do pequeno contexto, que reduz todo o sentido de uma obra ao papel que ela representa no próprio país”, observa Kundera. Como não existe um cosmopolitismo continental, Kundera advoga a boa tradição dos centro-europeus. Austríacos, tchecos, poloneses, húngaros, romenos, búlgaros, todos produziram uma riqueza cultural e contribuíram, cada um com suas línguas, para o grande conhecimento do mundo.

Freud, Franz Kafka, Elias Canetti, Danilo Kis, todos despontaram naquele miolinho do Velho Mundo. Pressionados por alemães e russos, os povos da região viram o surgimento dos maiores horrores (guerras, perseguições) do século 20. Um medo dos estranhos gerou fascismos de toda ordem na região, entrando em pleno século 21.

Os estranhos/familiares de agora são os refugiados do Oriente Médio, que chegam pelas fronteiras e vão até à ilha britânica – esta abriga os estranhos de suas ex-colônias no Caribe e da Índia.

O livro “A Insustentável Leveza do Ser” tem a pretensão de um dos capítulos finais de uma longa tradição europeia do romance, iniciada com Cervantes. A “centro-Europa” é uma periferia de uma cultura que se globalizou a partir do século 16, impondo formas de ver as coisas e de transformá-las em arte. Mas há indomáveis como Milan Kundera e sua leveza moderna. A mais recente fornada criativa dessa região revelou ao mundo o escritor romeno Mircea Cartarescu, que teve o romance “Nostalgia” (1993) publicado no Brasil em 2018.