Carta aberta à Academia Sueca: por um Nobel póstumo a Guimarães Rosa Foto / Luis War

Carta aberta à Academia Sueca: por um Nobel póstumo a Guimarães Rosa

Prezados(as) senhores(as) membros conselheiros(as) da Academia Sueca, escrevo-vos com o intento de propor uma reparação institucional de cunho histórico, em prol dos escritores que foram surpreendidos peloencantamento da eternidade, sem tempo hábil de vida para a contemplação do Prêmio Nobel de Literatura. Por esta razão, sugiro que seja criada uma condecoração póstuma aos autores não agraciados pela premiação mais prestigiosa das artes literárias e afins. A dádiva acadêmica se justifica como reconhecimento pela produção do espólio que herdamos destes escritores “injustiçados”, a fim de que se concedesse uma espécie de indenização pelo conjunto da obra, tornando-os aptos à consagração do Nobel de Literatura, em diálogo com a consideração consagrada pela revisão do esquecimento cometido por negligência ou mero lapso de memória.

A partir da restauração do regimento organizacional sobre critérios e regras de galardão e homenagem, recomenda-se, aos responsáveis pelo regulamento do Nobel de Literatura, que se ampliem e modernizem os parâmetros de concessão das benesses também aos autores já falecidos, a partir da criação da categoria de premiação póstuma, sob forma de correção das discrepâncias com os recém-preteridos escritores Amós Oz e Philip Roth, por exemplo. De acordo com esta revisão normativa e conceitual, creio eu que, por estes tristes trópicos, seria importante agraciar, ao menos, outros três escritores “deslembrados” pela comissão organizadora do Prêmio Nobel de Literatura, no século 20: o romancista Jorge Amado; e os poetas Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto.

Entretanto, conforme explicitado no subtítulo desta Carta aberta à Academia Sueca, estes manuscritos epistolares se perfazem pela reivindicação de se galardoar o ficcionista João Guimarães Rosa, autor de “Sagarana”, “Corpo de Baile” etc. Quanto ao Prêmio Nobel Póstumo de Literatura peço que o concedam ao artesão do vocábulo, haja vista que o argumento pró-tese se situa na esfera de que o romance “Grande Sertão: Veredas”, de fato, se configura como a obra literária mais significativa em prosa de ficção escrita no século 20, no idioma de Machado de Assis e José Saramago. Aliás, diga-se de passagem, o autor de “Memorial do Convento” e “Jangada de Pedra” até então vem a ser o único escritor de língua portuguesa aclamado em vida pelo Nobel de Literatura. Em prol do dr. João Rosa, a meu ver, poder-se-á asseverar que o prosador cordisburguense escreveu o livro de ficção mais importante do século passado, juntamente com “O Som e a Fúria (1929), de William Faulkner; e “Cem Anos de Solidão” (1967), de Gabriel García Márquez, em todo continente americano, de Norte a Sul.

Nisto, cabe ainda enfatizar que a obra-prima de 1956 vem a ser reconhecida por público e crítica como clássico da literatura contemporânea. Isto porque o antológico legado de Guimarães Rosa abarcará elementos que, conquanto a conjuntura se utilize dos regionalismos vigentes oriundos da segunda fase do Modernismo, o romance “Grande Sertão: Veredas” irá propor a desestabilização da narrativa fincada em raízes por vezes socializantes, assinadas por Jorge Amado e Rachel de Queiroz. Neste sentido, quiçá, o esboço ficcional de João Rosa, para além do recorte geográfico, se aproxime esteticamente de “Fogo Morto”, de José Lins do Rego, sobretudo por se distanciar do aprisionamento ideológico de parte do espólio da Geração de 30.

Na perspectiva de ruptura estética pelo viés de um palimpsesto do passado histórico ocidental, afirmar-se que Guimarães Rosa se apropriará de temáticas detectadas, tanto na travessia mítica do “Fausto”, de Goethe, quanto na saga do Cavaleiro da Triste Figura, “El Ingenioso Don Quixote de La Mancha”, de Miguel de Cervantes. Em “Don Quixote”, o subterfúgio narrativo se alicerça na representação da escritura dos pergaminhos árabes; e, consequentemente, da corrosão da onisciência discursiva das novelas de cavalaria. De outra feita, o arcaizante palavrear do jagunço-orador Riobaldo-Tatarana vem à tona por múltiplas reminiscências de paixões e combates, que, recorrentemente, irão esbarrar no segredo de sexualidade da donzela guerreira Reinaldo/Diadorim; e no pacto mefistofélico com o demônio das Veredas Mortas. Cabe acrescentar que a tácita comercialização da alma impulsiona também o “Grande Sertão ao “Doutor Fausto”, de Thomas Mann. Por falar no ficcionista alemão, peço aos eleitores do Nobel de Literatura que confiram os vencedores dos primeiros 50 anos do século 20; e me respondam se, com exceção do autor de “A Montanha Mágica”, laureado em 1929, de W. B. Yeats (1923), Pirandello (1934), T. S. Eliot (1948) e William Faulkner (1949) algum outro escritor agraciado possa vir a ser considerado mais importante do que Guimarães Rosa. É certo que o criador de “Sagarana”, surge-nos em 1946; todavia, se conferirmos a listagem de premiação, nos depararemos com Winston Churchill como ganhador de 1955. Em 1954 e 57, com justiça, os agraciados foram Ernest Hemingway e Albert Camus, respectivamente; porém, de 1958 a 1967, período no qual Rosa poderia ter sido condecorado em vida, apenas Jean Paul Sartre, conquanto seja um ficcionista medíocre, fez jus à premiação do Nobel de Literatura. 

Logo, eu asseguro-vos que, ao se depararem com a invenção da escrita do prosador Guimarães Rosa, os membros conselheiros da Academia Sueca se darão conta de que um ser humano vem a ser capaz de escrever com uma espécie de vara de condão, pois que subverte a antropologia da linguagem de tal feita que o encantatório e o sublime se rendem ao seu feitiço de escritura, qual fossem arrastados por uma correnteza alquímica, que transpõe a represa do idioma, em disfarces de rio, pássaro ou buritizal. Ao mesmo tempo, no “Grande Sertão”, retrata-se a condição humana em sua fronteira mais limítrofe de sobrevivência entre um ato de assassínio à traição (Joca Ramiro) e uma paixão proibida (Diadorim), que se equilibra por sobre o enigma de paternidade; e o de sexualidade de Maria Deodorina da Fé Bettencourt Marins. Enfim, por estas e outras estórias infindas, insisto que, após a sua criação, o Prêmio Nobel Póstumo de Literatura deva ser concedido ao escritor Guimarães Rosa, o Joãozito de Cordisburgo, com a urgência de um galope baio rumo ao impalpável da posteridade. E que, na garupa deste sertanejo poliglota, se homenageiem todos os outros escritores olvidados pelo silenciamento, mas que já foram referendados pelo aceno mímico da posteridade.