Você não irá desviar os olhos: novo filme da Netflix é uma mistura de Agatha Christie e Entre Facas e Segredos Divulgação / Netflix

Você não irá desviar os olhos: novo filme da Netflix é uma mistura de Agatha Christie e Entre Facas e Segredos

Ninguém pode se dizer a salvo da maldade invencível dos tantos lobos em pele de cordeiro que nos encurralam em circunstâncias entre absurdas e perigosas, farejando o sangue quente e doce de suas vítimas por baixo da pele empapada de suor e pânico, menos por desconhecer as intenções monstruosas de seus algozes que pela revolta de ter empenhado sua confiança a um inimigo oculto sob o frágil manto da cordialidade. A ideia da vida como uma experiência plena, sempre pontuada por episódios de conflagração, mas que se arranjam de modo mais ou menos célere à medida que os rivais encontram um ambiente propício à discussão de conceitos antagônicos que podem se complementar, está, por óbvio, intrinsecamente vinculada à noção e à prática da liberdade a que cada um jamais deixa de ter direito. Senhora das angústias mais profundas do homem, de onde emanam-lhe os sonhos mais doces, a liberdade se nos apresenta sob formas as mais variegadas, contemplando justamente o que existe de mais encantador na condição humana, sua natureza plural.

Foi essa noção de liberdade, aliada a uma hegemonia cognitiva sobre os outros animais, o que nos possibilitou conquistar a Terra inteira, mas sem o aprimoramento da força física, esse esforço teria sido em vão. O homem teve de se impor, primeiro sobre os bichos que julgava mansos, fazendo-os trabalhar para si; em seguida, como nunca seria aconselhável contar com a generosidade das feras que também dependiam da carne de outros animais para crescer, se desenvolver e alimentar seus filhotes, muito mais corpulentas e vorazes do que ele, teve de pensar em como fazer para minimizar o déficit de forças e combatê-las. Nesse embalo, surgiram ferramentas e armas como tações, lanças, fundas e machadinhas, e quanto mais pensava, mais se estendiam os domínios do homem sabedor, porque além da terra, tornara-se sábio o bastante também para desvendar os segredos do fogo. Muito tempo depois, já no século 9 da era cristã, observamos que juntando-se carvão, salitre e enxofre em proporções bem medidas, chegava-se a um composto explosivo que definiria de uma vez por todas nossa sorte.

As personagens de “7 Mulheres e um Mistério” são, no fundo, prisioneiras — de si mesmas, umas das outras, da vida que não têm — e travam uma guerra silenciosa, tácita — contra a vida que têm e de que não se julgam merecedoras, contra suas rivais tão íntimas, contra o que se tornaram. Imprimindo seu estilo a “8 Mulheres” (2002), o thriller cômico de François Ozon baseado na peça de mesmo nome de Robert Thomas (1927-1989), levada aos palcos parisienses em 1958, Alessandro Genovesi dá novo fôlego a um gênero rico de possibilidades em suas múltiplas invencionices, engraçado ao passo que é também inteiramente pontuado por notas melancólicas, tristes mesmo, de onde emerge uma tragédia que furta-se a se consumar, esquiva-se da fatalidade inevitável que compõe o destino dos tipos femininos em questão e se realiza no último ato, na derradeira cena, sempre amenizado pelo texto pleno de fantasia de Genovesi e Lisa Nur Sultan, roteirista experimentada em despertar no público sensações perigosamente contraditórias, em que a pena e a repulsa caminham de mãos dadas, conforme se vê em “Na Própria Pele – O Caso Stefano Cucchi” (2018), dirigido e também escrito por Alessio Cremonini, sua reconstituição de um crime bárbaro contra uma vítima que transgredia os limites do moralmente admissível.

Em “7 Mulheres e um Mistério”, o diretor e sua corroteirista oxigenam a categoria popularizada por Thomas investindo na fotografia Tecnicolor de Federico Masiero, como se tudo fosse um desenho animado para adultos, meio excêntrico demais, em que a violência do que é falado — e, principalmente, do que é sugerido — agride menos por envolta em vermelhos-cereja, verdes-bandeira, amarelos-ovo e azuis-navais do figurino de Francesca Sartori. A trama não tem nada de especial, e justamente por esse motivo vai tão fundo na imaginação de quem assiste. Sete divas do cinema italiano moderno e pós-moderno, lideradas por Rachele, a matriarca decadente de Ornella Vanoni, são imbricadas no assassinato de Marcello, de Luca Pastorelli, o genro de Rachele, que passa todo o filme em off, mas surge num desfecho surpreendente, ainda que de costas e mudo, para a revolta de suas convivas. Vanoni e Margherita Buy, que empresta o nome a sua personagem, encabeçam uma disputa pelo interesse do público a dada altura dos acontecimentos — com vantagem para a segunda —, mas é impossível deixar de se mesmerizar com as atuações a um só tempo enxutas e quase histriônicas de Benedetta Porcaroli, na pele de Caterina, e Luisa Ranieri como Maria, a criada que substitui o mordomo, mas, honrando a tradição, diz verdades revigorantes, tão necessárias num ambiente tão farsesco, e protagoniza uma das grandes reviravoltas do filme.


Filme: 7 Mulheres e um Mistério
Direção: Alessandro Genovesi
Ano: 2021
Gêneros: Mistério/Crime/Comédia
Nota: 9/10