Thriller psicológico na Netflix vai tirar seu fôlego por 105 minutos Divulgação / Paramount Pictures

Thriller psicológico na Netflix vai tirar seu fôlego por 105 minutos

É triste, é doloroso, mas também perfeitamente factível que duas pessoas que se amaram num tempo ainda não de todo sepulto tornem-se nada mais que dois estranhos um para o outro, fazendo com que o sentimento amoroso passe a uma natureza diversa, contrária à mais tíbia ideia do que é o amor em verdade. As expectativas, os desejos, os anseios, os sonhos ficam tão incongruentes entre si, afinam-se tão pouco — e mesmo concorram para objetivos desabridamente antagônicos —, que salta aos olhos a constatação de que essas duas criaturas parecem nunca haverem tido nada em comum, muito menos uma vida, ou qualquer coisa que se assemelhe a isso. Acontecimentos paralelos conduziram-nos a uma concepção que os autoriza a enxergar um ao outro como um inimigo figadal, peleando até a morte sofrida, momento em que se anuncia a única redenção possível e cada qual segue seu caminho definitivamente apartado de quem, talvez, tenha sido o dono de seus pensamentos mais nobres e mais delirantes.

A lógica do amor repele solenemente acordos, pactos, normas, regras, métodos, mormente os que tentam versar sobre outras humanas emoções, e tanto mais os que têm a pretensão de calar o que pode haver de mais genuinamente valioso no espírito do homem, sua fé no outro, terreno onde desabrocha o fundamento do amor, laço apertado e indestrutível entre duas pessoas que se querem bem. Tudo o que vai além disso e não se deslinda na versão mais poética e mais transformadora da mais humana das emoções não é mais que simulacro da mágica do amor verdadeiro, truque barato que dura o espaço de um sonho feliz, impossível porque fechado em si mesmo. Apelando a narrativas fantasiosas, mas também verossímeis, em que incerteza é tudo em que pode fiar-se uma mulher ultrajada com toda a sofisticação, Bruce Beresford faz de seu “Risco Duplo” a declaração de guerra de um ex-casal, separados pelo que pode existir de mais abjeto no comportamento do homem: a covardia.

As extravagâncias estilísticas de Beresford vêm embrulhadas num roteiro igualmente freak, de David Weisberg e Douglas Cook, que a todo instante pisca para o absurdo. Ashley Judd não fora escolhida a mensageira do caos idiossincrásico do diretor à toa: ao longo de uma prolífica carreira em Hollywood, Judd foi se notabilizando por tipos entre angelicais e diabólicos, como a doutora Kate McTiernan de “Beijos que Matam” (1997), dirigido por Gary Fleder. Aqui, a atriz cruza a linha do refinamento e se lança sem rede de proteção para Elizabeth Parsons, uma dondoca que pensa ter a vida que qualquer um inveja. Casada com um homem aparentemente acima de qualquer suspeita, amoroso, dedicado e muito rico, tudo com que Libby tem de se preocupar é nas aulas de navegação que prepara para o filho, Matty, de Spencer Treat Clark, exotismo que não conta com a aprovação sincera de Nick, personagem de Bruce Greenwood, com quem está desde a adolescência.

Tudo em “Risco Duplo” é meticulosamente calculado, inclusive a reviravolta que manda Libby para a cadeia depois de acusada por um crime que, como o farto material de divulgação apressou-se a explicar à época, não havia cometido. A entrada em cena de Tommy Lee Jones na pele de Travis Lehman, o agente da condicional da protagonista confirma essa impressão e lhe dá um caráter negativo, uma vez que Jones, presença sempre carregada de algum simbolismo nas produções de que toma parte, é tragado pelo clichê, e aparecendo só para constar.

Decerto o melhor do filme seja mesmo a cena final, de uma emoção genuína, despretensiosa, pueril até, e talvez por isso capaz de levar às lágrimas espectadores menos calejados. Mas há que se esperar 105 infinitos minutos para tanto.


Filme: Risco Duplo
Direção: Bruce Beresford
Ano: 1999
Gêneros: Thriller/Drama/Crime
Nota: 8/10