Filme com Katie Holmes, na Netflix, te fará acreditar em milagres e viver sem culpa Divulgação / Seacia Pavao

Filme com Katie Holmes, na Netflix, te fará acreditar em milagres e viver sem culpa

A vida se nos apresenta da maneira exata como cada um é capaz de suportá-la, dispensando certezas, fazendo pouco dos planos mais ordinários com que nos atrevemos a sonhar, passando por cima, sem nenhuma cerimônia, de tudo quanto podemos julgar precioso, impondo-nos sua natureza sobranceira, senhora de tudo o que existe, confundindo-nos quase sempre, ao passo que também esclarece suas obscuras intenções, o porquê de nos lançar em abismos tão fundos e tão habitados dos monstros que nós mesmos criamos. Conforme se vive e se ganha alguma intimidade com a vida, notamos que o maior prazer dessa entidade divina e diabólica que mantém-nos aqui por um tempo muito curto ou longo demais é nos submeter a seus caprichos, cujas justificativas pessoa alguma no mundo não pode nunca alegar conhecer. A vida passa, felizmente — só por essa razão podemos ter algum controle sobre seus imprevisíveis ardis — e pensar assim é sempre um grande risco —, deixa um rastro de destruição irrigado por aquele mar das lágrimas que vertemos, umas tantas sem medidas, exageradas, mas a maior parte saídas com uma dor que só em nós dói (e dói muito!), e ao cabo de todo esse processo, tudo o que nos resta é juntar os cacos da dignidade estilhaçada e ter a coragem de começar de novo. De outro jeito.

Arrostamos esse carrasco perverso de cara limpa ou valendo-nos também de expedientes menos ortodoxos — e quase desonestos —; estamos todos sós, mas não o tempo todo, e nesses ínterins surgem-nos as ocasiões perfeitas para que se prove de uma vez por todas que a vida é mesmo completamente falta de sentido, que por mais que tentemos entender a vida, mais perto chegamos da loucura e do absurdo. As personagens centrais de “Tudo o que Tínhamos” estão a todo momento raspando na insanidade, não muito certas do quão distantes podem estar da dimensão real do mundo porque anestesiadas pelas formas mais vulgares de sofrimento. Katie Holmes divide-se entre dar vida a uma dessas figuras e o posto de diretora do longa, dando conta de ambas as funções e provando-se uma realizadora atenta e sensível e se entregando a trabalhos que buscam fugir da mesmice.

Na pele de Rita Carmichael, Holmes tem a chance de avançar por quase todos os campos da dramaturgia em menos de duas horas. O roteiro de Annie Weatherwax — em cuja novela homônima o filme se baseia —, Jill Killington e Josh Boone é daqueles que muitos atores definem como um presente, mesmo que esse substantivo já tenha caído em franco descrédito, tamanha a frequência com que se o emprega. No caso em tela, a diretora-protagonista faz justiça às tantas possibilidades que Rita lhe oferece e faz um passeio completo, do drama à comédia, eximindo-se de observar limites entre um e outra e não se furtando a misturá-los, chegando ao melodrama e conseguindo mesmo aproximar-se da tragédia, obtendo resultados de admirável verossimilhança. Não é preciso muito para que se entenda o que Weatherwax queria dizer, e a interpretação de Holmes tem laivos de genialidade ao elaborar o argumento da necessidade material sem resvalar na facilidade de diálogos vazios, que acabariam por minimizar a angústia de Rita. Há dignidade na história dessa mulher que algum dia teve uma casa, um lar, um casamento, e agora só pode dispor de si própria, tirando força de suas muitas vulnerabilidades para criar a filha, Ruthie, de Stefania Owen — malgrado Ruthie vá se tornando muito mais resistente e, o que já se poderia imaginar, sensata que a mãe. Essa metamorfose de menina para mulher da personagem de Owen fica evidente, por exemplo, na forma como se afeiçoa a Pam, a garçonete transexual vivida por Eve Lindley. Enquanto Rita sempre dá um jeito de emendar um comentariozinho entre jocoso e desabridamente grosseiro sobre Pam — depois de ter tentado sair sem pagar pelo lauto café da manhã na lanchonete de Marty, de Richard Kind, tio da moça —, Ruthie a acolhe e é acolhida por ela.

Lamentavelmente, a amizade das duas se perde em meio aos milhões de subtramas, como os dois romances de Rita, com homens de extrações diametralmente opostas, sem muita função no corpo do filme.

História despretensiosa de uma mãe e sua filha lutando pela felicidade — e muito antes disso, pela própria vida, juntas —, “Tudo o que Tínhamos” é uma compilação de boas situações dramáticas, todas resolvidas com objetividade e a poesia possível por Katie Holmes, que tomou mesmo gosto pela direção. Que ela continue exatamente assim.


Filme: Tudo o que Tínhamos
Direção: Katie Holmes
Ano: 2016
Gêneros: Drama
Nota: 8/10