Filme que acaba de estrear na Netflix reedita a história de Pablo Neruda e o Carteiro e vai te  emocionar Araya Corvalán / Netflix

Filme que acaba de estrear na Netflix reedita a história de Pablo Neruda e o Carteiro e vai te emocionar

A qualquer momento da vida podemos nos sentir perigosamente sós, como se desterrados em nossa própria existência, presos num silêncio atroador, implorando pela compaixão de alguém, e quanto mais consome-nos a angústia, mais nos apercebemos do quão perdidos estamos em nosso próprio desespero, ansiando por um salvador que não vem nunca, que não nos quer conhecer, que nos tem desprezo. A inadequação para com o mundo serve ao homem como um sinal de que é-lhe necessário buscar o entendimento — primeiro sobre sua própria natureza, seus receios, carências e misérias — que o permita alcançar a sabedoria instintiva que, por seu turno, há de prestar-se-lhe como amparo quanto a obter de si mesmo, tirando do mais fundo e bárbaro de seu espírito, algum indício de que não é nenhuma rematada extravagância supor que se tenha a chance, por mínima que seja, de penetrar o reino vasto (e muitas vezes perigoso) do autoconhecimento, depois de uma peregrinação exaustiva e vã por outras tantas cercanias de cujo chão só brota uma carnuda aridez.

Esse alicerce que o homem vai erigindo a fim de manter sua alma a salvo da vileza do mundo, estágio moroso e doído, é só um breve amanho para que possa, afinal, tornar-se quem é. Lançamo-nos a desafios para os quais nos sabemos ineptos, e ainda assim, derrogar a tarefa, por mais imperioso que seja o motivo da renúncia, fede a covardia, o exato oposto do que a vida representa. Nos instantes em que somos tomados por uma total afasia, por uma fraqueza arrebatadora, quase absoluta, salva-nos justamente a consciência de que os propósitos para nós tão vitais, aqueles que, por mais que tentássemos, jamais conseguiríamos sufocar no oceano de sentimentos gorados que também nos banha a alma, resistem — malgrado dormitem em algum escaninho secreto e nebuloso da mente. A poesia se constitui em boa medida dessas idas e vindas, dos avanços e, principalmente, dos retrocessos que tomam forma para além do que se permite revelar na natureza humana. E “Ardente Paciência” é um bom exemplo do que pode a verdadeira poesia, em especial quando personificada por um dos gigantes dessa arte, tão escondida quanto nobre. O chileno Rodrigo Sepúlveda compõe um trabalho filigranado, que se esmera em incutir no espectador a sensação de que a poesia faz parte da vida ela mesma, no detalhe e no todo, em suas muitas e insondáveis essências.

Assim como a poesia, o amor também é um elemento a que quase nunca atentamos, mas está lá, permeando a vida de todas as criaturas, tão fluido que dele nos nutrimos sem que nos alerte a consciência. Sepúlveda se vale do roteiro de Antonio Skármeta — autor do best-seller “O Carteiro e o Poeta” (1985), vertido para o cinema em 1994 por Michael Radford — e Guillermo Calderón precisamente para reforçar o que Skármeta e Radford já haviam dito: nenhuma manifestação artística metaboliza com tamanha justeza a erudição e a simplicidade como a poesia. Pelo lado da erudição, se destaca ninguém menos que Pablo Neruda (1904-1973), muito mais que poeta, muito mais que artista. Amargando um edulcorado degredo em Isla Negra, a pouco mais de uma hora de Santiago, Neruda ainda sofria com perseguições políticas graças a sua fé convicta no Partido Comunista do Chile, pelo qual chegou a aventar candidatar-se à Presidência do país, retirando-se da empreitada em favor de Salvador Allende, deposto por um golpe de estado em 11 de setembro de 1973. O filme menciona a política apenas tangencialmente, preferindo, como a produção de 1994, concentrar-se no relacionamento de Neruda, aqui interpretado por Claudio Arredondo, e Mario, o carteiro que dele se aproxima meio a fórceps, de Andrew Bargsted.

“Ardente Paciência” não acrescenta muito mais do que “O Carteiro e o Poeta” já havia contado, mas assim mesmo a história sustenta sua força. É bom lembrar Neruda. É bom lembrar que há poesia, escondida, no mundo.


Filme: Ardente Paciência
Direção: Rodrigo Sepúlveda
Ano: 2022
Gênero: Drama
Nota: 8/10