Novo suspense psicológico da Netflix vai te enlouquecer aos poucos até te deixar completamente paranoico Divulgação / Netflix

Novo suspense psicológico da Netflix vai te enlouquecer aos poucos até te deixar completamente paranoico

Ao longo da vida, vão se sedimentando na alma do homem as consequências de anos de frustrações e mágoas, o que, por óbvio, têm seus desdobramentos. O espírito e tudo o que nele habita torna-se pesado, opaco; as lembranças que antes rescendiam à glória e júbilo passam a tresandar um cheiro nauseabundo, como se o que deveria ter sido retirado há algum tempo permanecesse, malgrado contra a nossa vontade, e se consumisse, e se decompusesse, tomando o espaço do que teria de novo a florescer e renovar os ânimos. Consegue-se tolerar a atmosfera de ruína que de nós mesmos exala até o ponto em que esse oceano de trevas se atém a ferver apenas dentro de nossas profundezas. Uma vez que suas águas principiam a arrebentar na praia da vida em sociedade, frequentada por toda sorte de gente — aqueles que nos querem bem, dispensam-nos seus conselhos com a melhor das expectativas, desejando que reencontremos a alegria capaz de revolver o lodo e dele só tirar pérolas, e os que apostam que está próximo o nosso último suspiro, que o lamento estertorado de nossas queixas prenuncia —, é momento de empreender uma tentativa qualquer a fim de virar o jogo enquanto ainda é possível.

Casamento é loteria. Homens e mulheres casam-se pelos motivos mais variados e incongruentes entre si, havendo ou não espaço para o amor. Em muitas circunstâncias, o que fica parecendo é que, a certa quadra da vida, a solidão torna-se tão insuportável que há que se tentar qualquer medida para debelá-la, sendo a união com uma pessoa com quem se compartilha alguma afinidade a mais óbvia. Como nunca paramos de querer — e não sabemos o que querer —, a companhia frequente do parceiro vira um tormento; essa é a deixa perfeita para que passem a integrar a equação os filhos, quase sempre desejados, mas que também irão manifestar seus próprios arbítrios, bem antes do que supõe a ingenuidade dos pais. Ninguém nasce pai ou mãe, naturalmente: educar e prover o sustento de um filho é uma habilidade que só o tempo pode conferir, com maior ou menor empenho das partes em questão. Até que mais variáveis façam-se observar.

Esses obstáculos para a harmonia de duas pessoas que se gostam, por mais que se desentendam, tomam a forma de uma garotinha aparentemente indefesa e inofensiva, encarnação de um mistério que se abate sobre um casal perdido em suas ilusões. “Jaula” (2022), é uma máquina bem azeitada em que o suspense recrudesce e diminui, da mesma forma que o enredo, banal no início, perturbador depois. O thriller do espanhol Ignacio Tatay é uma história nada fácil contada sem dificuldade.

A maneira como Paula e Simón são apresentados ao público é a metáfora mais adequada para defini-los. Os personagens de Elena Anaya e Pablo Molinero Martínez atravessam uma crise no casamento, exposta com uma melancolia quase trágica no roteiro de Tatay e Isabel Peña. Como se esperassem os bárbaros, feito o eu lírico do poeta grego Konstantinos Kaváfis (1863-1933), os dois adiam a decisão de se separar, até, em deslocamento por uma estrada deserta numa noite lúgubre, deparam-se com uma cena que desafia a razão: uma garota lhes interdita a passagem. Eles resolvem levá-la consigo, sem imaginar o risco que sua bondade implica.

Filigranas do texto do diretor-roteirista e sua colaboradora esclarecem, como boa dose de licença poética, qual o nome da menina e de onde veio. Klara, uma boa aparição de Eva Tennear, parece à beira de um colapso nervoso, na raras vezes em que abre a boca só se comunica em alemão, e, o que acaba por virar o fio condutor da narrativa, se recusa a sair do espaço definido com quatro retas no chão, fechadas num quadrado. Sempre que Paula, Simón ou algum imprevisto tentam obrigá-la a deixar esse seu pequeno reino, Klara se transfigura, o que a nova mãe entende como uma reação a possíveis maus tratos quando em convívio com sua família biológica.

Tatay dá ao espectador pistas que lhe permitem inferir onde pode dar a relação de Paula, Simón e Klara, destacando os conflitos que essa mãe involuntária enfrenta em nome de um sentimento que lhe é ainda desconhecido, mas que a arrebata mais e mais. No encerramento, “Jaula” aponta para um hiato físico entre as duas, sem que isso signifique que tenham se afastado, pelo contrário até. O amor de uma verdadeira mãe resiste a despeito de convenções e documentos.


Filme: Jaula
Direção: Ignacio Tatay
Ano: 2022
Gêneros: Terror/Suspense
Nota: 8/10