Quanto mais tentam aprisionar o homem em gaiolas, ainda que douradas, mais a natureza humana, teimosa, se arvora em romper limites e voar, voar alto. A humanidade é ávida por sonho desde seu primeiro passo sobre a Terra, haja vistas as pinturas nas cavernas e esculturas legadas por nossos ancestrais mais primevos. Talvez seja apressado asseverar que a humanidade nunca tenha precisado tanto de uma garantia qualquer de que continua capaz de sonhar como agora, mas decerto é exato afirmar que, como o sol que se levanta todos os dias, o sentimento de que o mundo pode ser um lugar perfeito é uma doce ilusão. Ao homem, só resta mesmo sonhar. Por meio de narrativas que mesclam com a exata displicência realidade e o maravilhoso, o fantástico, o que gostaríamos que existisse, mas não existe, criaram-se grandes obras da literatura mundial, tendo sido o escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), o autor que mais destaque recebeu ao publicar livros que falavam de terras fictícias em que se passavam fatos aparentemente absurdos, caso de “Cem Anos de Solidão”, de 1967. Gabo, como era conhecido, pode ser considerado o pai do realismo mágico, a corrente literária latino-americana que fez frente à literatura fantástica produzida na Europa. Ao misturar tão bem sonho e realidade, Gabo provou que sempre fora possível dar corpo a histórias sublimes, sem deixar de lado a vontade de mudar um tanto a vida real. Os filmes foram listados do mais recente para o mais antigo, sem normas de avaliação, e estão todos à disposição no catálogo da Netflix. Agora, é assistir e se responder à pergunta de um milhão de dólares: a vida é sonho?
Comédia pontuada por um drama de família bastante sui generis, “O Homem sem Gravidade” traz a história de Oscar, que nasceu com um curioso distúrbio: ele não é afetado pela gravidade (a propósito, é antológica a cena do nascimento do garoto). Oscar não conta com um pai para chamar de seu, mas é cercado do amor da mãe e da avó superprotetoras, que se esforçam em escondê-lo dos olhares curiosos — e, certamente, carregados de maldade — da vizinhança. Ao se tornar adulto, o protagonista decide ver o que se passa por trás das paredes de casa, e logo é assediado a fim de trabalhar como garoto-propaganda, o que o faz se sentir como uma espécie de aberração. O diretor Marco Bonfanti se vale do enredo para elaborar teses sobre como teria sido a vida de Oscar — que recebe esse nome justamente em referência à premiação do cinema americano, circunstância que o desloca ainda mais do mundo real — se não houvesse passado pelo subjugo da família. Aqui, o fato de a gravidade não se aplicar a Oscar se enquadraria como uma metáfora quanto às amarras a que estamos todos submetidos desde o momento em que vemos a luz do dia pela primeira vez. Da gravidade apenas Oscar escapa, e seu desafio maior será tentar se equilibrar entre a vida comum que deseja ter e sua condição fenomenal, que o lança para tão distante do resto da humanidade.
Lazzaro é um jovem morador da fazenda Inviolata, cuja dona, a marquesa Alfonsina de Luna, mantém seus empregados sob a condição de escravos. A polícia realiza uma batida na propriedade e os liberta, conduzindo os trabalhadores à cidade. No caminho, Lazzaro acaba caindo de um penhasco e ninguém procura por ele. Alguns anos depois, Lazzaro ressuscita e vai atrás dos antigos colegas. Com elementos do realismo mágico, mas também rendendo homenagem ao neorrealismo, responsável por verdadeiras joias do cinema italiano, a diretora Alice Rohrwacher escalou para viver Lazzaro um ator sem experiência, que se revelou um achado. Por ter estado a vida inteira por baixo, mas sem nunca encontrar um jeito de virar o jogo, o personagem é tão complexo. Adriano Tardiolo, o intérprete de Lazzaro, dá conta do recado com o pé nas costas e lembra outros célebres tipos sofridos e adoráveis da tela grande, a exemplo do Forrest Gump de Tom Hanks e do Gilbert Grape de Johnny Depp. Tudo uma ode à sensibilidade, neste ou em qualquer tempo, deste ou de outro mundo.
Numa engenhosa crítica à indústria de alimentos — e, por extensão, ao próprio capitalismo —, Bong Joon-ho apresenta ao público a história de Okja, uma espécie de simbiose de hipopótamo com porco que resultou num animal estranhíssimo, mas dócil e muito lucrativo. A criatura faz parte de um lote de 26 espécimes, que irão para diversas partes do mundo. Okja, uma fêmea, é destinada para a Coreia do Sul. Ao fim de algum tempo, os animais serão novamente reunidos num concurso, a fim de se saber quem dispensou o melhor tratamento ao bicho que lhe coube, eleito vencedor da competição. No entanto, vencido esse prazo, Mikha, tutora de Okja, se apegou muito a ela e não cogita interromper essa relação. “Okja” encampa um atilado libelo contra o consumismo, a degradação do meio ambiente e a ética relapsa no que concerne ao tratamento dos animais empregados como alimento, e, claro, as consequências de tamanho descaso e ganância na saúde das pessoas. O filme faz pensar sobre até que ponto é válido se permitir capturar pelas armadilhas do consumo cada vez fácil usando para tanto a figura de uma garota e seu mascote, aparentemente repulsivo, mas que só desperta compaixão e ternura.
Cria do teatro, Roger Eggers mostra a que veio já em seu début na sétima arte. “A Bruxa” apresenta apuro estético e veracidade em cada uma das cenas que compõem este longa de 2h20. Eggers presenteia o espectador com um filme espantoso ao contar as desventuras de William e Katherine, um sombrio casal de imigrantes ingleses que se estabelecem na Nova Inglaterra, Estados Unidos. Forçados a deixar o lugar onde se instalaram primeiro, se dirigem para uma floresta. As desgraças pelas quais vêm se defrontando são coroadas quando o filho mais novo, um bebê de poucos meses, simplesmente some diante da irmã mais velha, que tomava conta dele. A garota é acusada pelo desaparecimento do pequeno devido a um mal-entendido, fruto de uma brincadeira infeliz que fizera com outros dois irmãos. A numerosa prole, composta por cinco filhos, vai diminuindo sucessivamente, e resta claro que há mesmo uma entidade demoníaca se instalando no seio dessa família.
Desencantada com o fracasso de seu relacionamento, Clementine decide esquecer Joel. Para tanto, se submete a um experimento que varre de sua memória os momentos vividos com ele. Joel, ao saber da história, fica muito ressentido e desapontado, afinal ainda a ama, mas decide dar o troco e também participa dos testes. Lá pelas tantas ele se arrepende, constata que definitivamente não pretende apagar Clementine da lembrança e exige que a operação seja interrompida. Tirando da cartola alguns clichês da comédia romântica e os misturando a mancheias de ficção científica, Michel Gondry dá corpo a um filme delicado, original e lúdico, que se utiliza de todos esses predicados para suscitar no público a reflexão sobre a fluidez das relações, instabilidade que se verifica em larga proporção na própria natureza humana.