Brutal e perturbador, novo filme da Netflix prova que a vida é mais chocante do que a ficção Divulgação / Netflix

Brutal e perturbador, novo filme da Netflix prova que a vida é mais chocante do que a ficção

Maneiras autoritárias de se relacionar com os outros, fundadas na satisfação de suas próprias vontades em detrimento das carências e das emoções alheias, são um aspecto do temperamento de boa parte dos indivíduos desde que o mundo é mundo. Quanto mais dura se nos apresenta a vida, mais se pensa ser correto exigir que ela devolva tudo aquilo que se imagina ser um direito inalienável, cada vez mais amplo, mais sem controle e que se se crê válido para qualquer um, em especial para uns poucos felizardos que nascem sob dadas circunstâncias. Homens somos uma dessas categorias, a despeito da cor da pele, da classe social em que se situa, da idade ou da religião. Nascer com um cromossomo de cada feitio, o primeiro x e y o seguinte, continua a ser um salvo-conduto da biologia para que muitos sintam-se autorizados a cometer toda sorte de absurdidades, que, naturalmente, impactam a vida de muita gente, às vezes apenas de maneira superficial, mas também chegando às vias da agressão exacerbada e cruel, das torturas da alma e do corpo, do crime, da morte.

O conceito de masculinidade sempre existiu, ainda que se apresentasse com nomes diferentes. Têm sido necessários o empenho e a vigilância de homens e, principalmente, das mulheres que se cansaram de sofrer caladas para que um sistema estabelecido há séculos começasse a experimentar alguma mudança de vulto, a exemplo da que se observou na Itália a partir dos anos 1970. “Garotos de Bem” (2021), o drama do italiano Stefano Mordini, se alonga sobre a maneira como a sociedade de seu país foi se dando conta de que havia algo de muito podre no seio das relações entre os gêneros, que transformações profundas no trato para com a discussão dos pleitos femininos eram mais que convenientes — se faziam essenciais e inescapáveis — e que em paralelo com a conscientização individual, processo sem dúvida moroso, mas efetivo, a posição das autoridades quanto a rever o ordenamento jurídico também haveria de se tornar uma realidade. A convergência de todos esses fatores, tão vagarosa quanto ansiada, foi o que viabilizou a mudança de perspectiva e de paradigma que continua ainda hoje.

Mordini retrocede quase meio século a fim de contar a história real de três rapazes de classe média alta implicados num crime grave. Seu roteiro, assinado em conjunto com Luca Infascelli e Massimo Gaudioso, volta a 1975, na esteira das atribulações sociopolíticas que degringolaram no caos patrocinado pela esquerda e pela direita. As sequências iniciais chegam a ser pueris, de tão inocentes. No Instituto San Luigi, a escola católica exclusiva para rapazes a que o título original do longa faz referência, um grupo de estudantes se depara com as questões próprias da idade, a começar pela sexualidade, o que o diretor enfatiza logo à abertura, com uma sequência em que mostra a classe numa sessão de calistenia à beira da piscina. Como sói acontecer nesses ambientes, a tensão sexual é uma constante, e mais à frente, Mordini reforça esse argumento num excelente plano-sequência em que um dos alunos leva cintadas dos outros no anfiteatro em que acabara de ser ministrada a aula de educação artística em que se falou sobre uma gravura em que Jesus era retratado sob tortura. Um close deixa claro que o aluno gostara da brincadeira, e esse momento serve de introdução ao segundo ato, verdadeiramente perturbador.

Donatella Colasanti, vivida por Benedetta Porcaroli, e Rosaria Lopez, interpretada por Federica Torchetti, aceitam passar uma tarde com Andrea Ghira, papel de Giulio Pranno, Angelo Izzo, persongem de Luca Vergoni, e Gianni Guido, de Francesco Cavallo, numa villa nos arredores de Roma. A ação é narrada por Edoardo Albinati, autor do livro em que Mordini e sua dupla de colaboradores se inspiraram, e Emanuele Maria Di Stefano é plenamente capaz de fazer com que o espectador seja tragado pela atmosfera de terror que recrudesce até o desfecho trágico, quando uma tela negra traz as informações sobre o destino de cada uma das partes do episódio. Porcaroli e seus belos olhos grandes e acintosamente verdes transmitem a sensação de agonia de Donatella, primeiro transmutada em revolta, depois em asco e por fim em bestialização. O caso foi o estímulo que faltava a fim de que se mudasse o entendimento sobre o crime de estupro, antes encarado como de ofensividade moral (e que acarretava penas mais brandas). A partir de então, a legislação italiana passou a considerar a violência sexual contra a mulher um delito que fere a dignidade da pessoa humana, hediondo, e sem direito a fiança.


Filme: Garotos de Bem
Direção: Stefano Mordini
Ano: 2021
Gênero: Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.