Um inventado escritor de ficção escreve um livro que é o roteiro do filme que estamos vendo. Esse roteiro é “real” (são experiências vividas pelo personagem) ou imaginado por ele? Esse é o dever de casa que esse autor fictício propõe para a “imprensa” no lançamento.
O roteirista (real) de “O Cidadão Ilustre” (2016), Andrés Duprat compõe essa charada filmada por Gaston Duprat e Mariano Cohn, que podemos resolver no enfoque do meu livro “Todo Filme é Sobre Cinema” (Ed Unisinos). O filme que estamos vendo é sobre ele mesmo.
A visita de um Nobel de Literatura à sua Macondo, em vez de uma celebração é um teste de sobrevivência. O autor que explorou a cidade em sua obra enfrenta a realidade que alimentou de memória a sua ficção. Com uma diferença: agora ele faz parte da trama. Desse impacto brotará a continuidade de sua literatura que estava em fase terminal.
Nas caminhadas pelas calçadas da memória, nada encontra das pistas do seu passado. As pessoas se transformaram e são ameaçadoras e perigosas. Sua obra desperta pouco interesse, apenas sua fama é levada em consideração. Entre sufocantes selfies coletivos, palestras para meia dúzia ou plateias desatentas, abordado violentamente por quem se considera prejudicado por suas atitudes, ele acaba dizendo verdades sobre a cultura — palavra que execra e que tem sido confinada a espaços sob opressão e controle — e a própria natureza do ofício, onde não conta o caráter ou a personalidade do autor, mas sua capacidade de escrever com competência.
Recados que o filme transmite por meio de forte carga de interpretação tanto pelo protagonista, Oscar Martinez, o ótimo Dady Brieva no papel do aterrorizante e simpático Antonio, e mais Andrea Frigerio (a namorada que casou com o amigo facinoroso do escritor), Nora Navas (a paciente e eficiente secretária), Manuel Vicente (o prefeito demagogo) e Marcelo Dándrea (o artista plástico frustrado que destrata publicamente o autor que voltou para sua cidade nata) Além da bela Belén Chavanne, a moça que tenta sair da cidade se oferecendo para o ilustre conterrâneo.
Essa trama do ótimo cinema argentino é uma armadilha ficcional, que envolve o espectador numa realidade que tanto pode ser memória quanto criação literária. É o filme voltado para si mesmo, usando as ferramentas da arte visual e letrada, expondo seu foco principal, já que nada pode ficar fora do cinema numa obra cinematográfica.
Filme: O Cidadão Ilustre
Direção: Gastón Duprat, Mariano Cohn
Ano: 2016
Gêneros: Drama/Comédia
Nota:10/10